Jô me soa tão bonita. A palavra, o apelido: Jô. Apelido de Joinville, a cidade. Apelido que dei em algum momento de mil novecentos e noventa e sete. Era madrugada e nós voltámos de uma noitada naquele bar onde tocavam Dentinho e Formiga. Antes tínhamos ido a um show do Mílton, “Tambores de Minas”, com um coro imenso de crianças, uma lindeza. Passando pelo pórtico, na saída da cidade, exclamei:
– Até mais, Jô – e assim nasceu o apelido. Ao menos pra mim, claro.
Demorei a conhecer Jô. Mas me apaixonei assim que conheci. Lembro bem da ocasião. Eu já era casada. Fui com meu marido à Festa das Flores. Entrei no pavilhão e segui um caminho sinuoso entre um mar de rosas, margaridas, cravos e girassóis. A simples memória dessa cena me arrepia. Eu me senti numa tela dum Van Gogh primaveril. Desde então passei a viajar à cidade. Sempre que pude, fui ao Festival de Dança. Sempre que fui, parti com a vontade de voltar. A cidade me parecia um lugar de sonho.
– Ate mais, Jô – disse sempre ao passar pelo pórtico.
Tem anos que não piso lá. Não faço ideia do porquê. A vida faz isso. Ou a pandemia, sei lá. Não importa. Sigo sempre atenta ao que se diz sobre a cidade. Sobre a vida cultural. As opções gastronômicas. Os caminhos bonitos nos arredores da urbe. As soluções dos problemas típicos de uma cidade grande. Jô também tem isso: é a maior cidade do Estado. Tem um quê de metrópole. E tem méritos – bem joinvillenses – em lidar com isso.
Ou tinha. Já não sei se tem tantos méritos assim. Tenho ouvido coisas ruins de Jô. Uma certa truculência arrogante. Uns berros em coro cheios de ressentimento. Umas coisas vulgares de quem acredita poder falar ao “resto do Brasil”. Jô, a capital do norte do Estado, tem sido o centro nervoso de uma gente que soa provinciana demais. Tão provinciana que até parece se julgar superior.
Foi isso – essa arrogância truculenta, esse provincianismo, esse ressentimento – isso que me veio à mente quando ouvi sobre a “feira”. Sim, a cidade está realizando uma grande feira em que não há flores nem bicicletas, nem tambores e nem balés, nem primaveras e nem sonhos. Uma feira em que as crianças não podem entrar e as mulheres não podem sorrir. Uma feira feia e hipócrita e sombria. Uma mancha na imagem de Jô.
A cidade das flores, dos príncipes e dos meus sonhos parece insistir em revelar uma outra face. Uma face subterrânea. Um aspecto pouco nobre de sua existência. Uma flor que brota em tempos pantanosos. Sem cor sem perfume sem rosa sem nada.
Tem nada, não. A grande cidade que conheci não vai se curvar diante das nuvens negras no horizonte. A feira acabará e deixará apenas o rastro de dinheiro e pólvora. O ressentimento se transformará em música. O tempo pantanoso, em uma primavera cheia de luz. Então voltarei e verei a cidade mais bela do que jamais esteve.
– Até mais, Jô – direi ao passar o pórtico cheio de flores e crianças e sorrisos e sonhos. E terei como sempre a certeza de voltar.
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