Resolvi dar uma tarefa nova a meus filhos. A tarefa: escrever um texto semanal. O tema é definido por mim. A menina deve escrever um texto com vinte linhas. O menino, mais novo, um com quinze. Eu os corrijo com eles, os escritores, ao meu lado. Dou três notas: ortografia, conteúdo, arte. Calculo a média, passo a régua e desenho a nota final num enorme algarismo ao pé da folha: encerra-se assim, algo cabalisticamente, a tarefa. Minha intenção, claro, é fazê-los exercitar a técnica de escrever. Eu disse “técnica”, mas pensei “arte”. Na verdade, tenho dúvidas. Em todo caso, trata-se de escrever. Arte ou técnica, é algo essencial – e exercitável.
Eles reagiram com uma fúria jacobina. Isso de uma nova tarefa não estava, eles disseram, nos nossos estatutos. Interessante como os filhos, exercitando seus direitos, vão criando o ordenamento do nosso convívio. Criando, não: revelando. Eles advogam perante a instância decisória (basicamente, eu) como se o ordenamento estivesse lá o tempo todo, tão impecável e atemporal quanto a lex naturalis do Sêneca. Mas não adiantou: decretei a nova tarefa, exigi o cumprimento sob pena de sanções pesadas (basicamente, a perda dos eletrônicos) e fiscalizei sua estrita execução. Eles apelaram às últimas instâncias de meu juízo. Fizeram sustentações, impetraram writs, tentaram até embargos auriculares. Sem sucesso. Feita a coisa julgada, ousaram descumprir os prazos, testando a efetividade de minhas reprimendas. Eu reprimi com rigor, arrestando celulares e afins. Afinal, eles capitularam.
Então vieram os textos. Primeiro tema: “a coisa de que mais gosto”. Usei de propósito a palavra “coisa”: embora nenhum deles seja um Kant, são capazes de lhe dar um sentido profundo. Os textos tinham problemas de fluxo discursivo e vários erros ortográficos. Mas os de quem não os tem? Enfim, tenho que admitir: eram interessantes.
Especialmente o do menino. Ele escreveu em versos! Eu fiquei vivamente impressionado. Não com o poema em si, está claro, mas com a iniciativa de versejar. Pra ser franco, estranhei. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Ele nunca foi de fazer poesia. É esperto, pragmático, joga sempre pra ganhar: como diria Fried Hölderlin, poesia não é jogo. Em suma, o menino não tem pinta de poeta: no máximo, um certo deboche oswaldiano ainda insuficiente pra arriscar a mais despojada redondilha que seja. O que explica então aqueles versos?
A menina me ajudou a elucidar o mistério. Ele escreveu em versos pois assim completava mais facilmente as quinzes linhas exigidas. Qualquer verso, por curto que seja, é uma linha. Na prosa é diferente: há que se encher todas as linhas de palavras. Eu sabia: ele joga sempre pra ganhar. A invenção da poesia, no caso, é resultado da mais utilitária economia: como diria Compadre Washington, danado!
Considerei até repreender o menino. Talvez fosse ocasião pra ensinar algum respeito à poesia. Mas desisti. Sabe-se lá o que levou o homem a criar a arte. Talvez a necessidade de memorizar textos quando ainda não havia a escrita. Talvez a vontade de impor suas mensagens. Então se explica o recurso ao ritmo e à concisão. Há nisso uma orientação estilística e atávica: usar somente as palavras precisas e essenciais. Resultado da mais utilitária economia?
Não só. Mesmo o texto do menino tinha lá uma graça. Uma rima com bola e escola. Uma outra com jogar e sonhar. Tinha um pouco de sonho nos versos dele. Tinha um impulso que levava o texto adiante, ritmado, sonoro, mnemônico. E tinha sobretudo a ousadia, a rebeldia, a coragem de estar no limite entre o permitido e o proibido. Sim, talvez houvesse ali alguma poesia autêntica. Com deboche, feita pra ganhar: mas autêntica.
Então confirmei: nota 10 em arte. Mas respondi à esperteza dando um 7 em ortografia. Afinal, havia vários erros. E eu tampouco sou poeta, nem jogo pra perder.
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