Arte

A polêmica do poema.

O velho poeta cansara dos sonetos de amor. Já não se lançava nas longas travessias dos decassílabos e alexandrinos. Sufocara o lirismo solipsista dos mergulhos em si mesmo. Afinal, ninguém o amara. Ninguém dançara com ele os passos leves de seu ritmo. E ninguém tava nem aí pro eu-mesmo de ninguém.

Bastava! O velho poeta decidiu abrir as janelas ao mundo. Sua terra e sua gente seriam seu tema. Sua pequena cidade, com seus campos abertos em flor, sua obsessão. A doce urbe daquele começo de século! A nova Alemanha entre o Morro da África e a Tifa dos Bugres!

Mas o novo poeta, surgido das cinzas daquele velho piegas, era diverso quanto a tudo mais. De sua terra, ele não cantaria os campos, as flores, o rio; de sua gente, nem dores em liras, nem hinos de amores. O dorso arcado do povo era sua inspiração. As mãos lamacentas do poder, seu foco. O sarcasmo, sua arma. E o pobre prefeito, um jovem de olhos puros e intenções vagas, foi o alvo de sua verve implacável. Só uma coisa era comum a ambos, ao novo e ao velho poeta: ninguém lhes dava a menor bola.

Isso até ser veiculado, numa publicação ignota e após uma reação reconhecidamente tíbia do chefe do paço diante do assédio das instâncias mais altas e obscuras da comarca em detrimento de uma demanda popular amplamente alardeada, aquele pequeno poema:

Ei, Alcaide,

não se peide,

nem se… Ai de

mim, que hei-de…

A repercussão da quadrinha estupefez. Seus versos uniram todo o vale numa só discussão. Houve quem o achasse vulgar e mesmo insuportavelmente injurioso. Houve quem o considerasse genial, com suas elipses tão sugestivas. Houve até exercícios públicos, em mais de uma dúzia de botecos, para preencher os espaços vagos das reticências. O poema corria a cidade cantado em mil melodias melífluas. Não houve quem fosse indiferente a esse fruto do conúbio entre o poeta e Pólemos.

Dia hoje, a polêmica parece excessiva. O poema é simplório. Mas pondere-se: há certa graça na ressonância de seus ditongos. E sobretudo: há nele vozes pressagas. O poeta reconhecia, desde logo, o alto preço que pagaria. De fato, ele até teve algum sucesso após a polêmica, especialmente com uma intrépida sextilha atacando “absconsas irmandades” e seus “fluidos fecais”; tempos depois, porém, encontraram-no suicidado com a boca cheia de bosta. Como bem disse o próprio, num vaticínio lúgubre, ele havia-de…

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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