Maio começava sempre assim: o pai sumido, a mãe calada, o vento sul. O vento esfriava a vida. A mãe calava de frio. O pai cantava na porta do rancho na beira do mar:
A tainha taí A tainha taí, ó!
Eles todos cantavam. Os pais de todos nós, meninos da Armação. Cantavam o início da safra. O início de maio. O fim da tristeza quaresmeira que vinha desde o carnaval. Maio era festa. Era pesca. Era tainha. Lembro sempre daquele refrão, marcado com palmas, em lá maior:
A tainha taí A tainha taí, ó!
Há quem não entenda o que representa pra esses homens, homens como eu e meu pai, a pesca da tainha. O maio inteiro no rancho. A canoa, a rede e a vigia. A cachaça, a farinha e iansã. E a pesca. O grande momento, o êxtase da pesca. O lanço: as quinhentas braças de rede estendida no cerco ao cardume. E o alvoroço do cardume. O mar cheio de faíscas prateadas fazendo os olhos de todos brilharem. E todos então puxando a rede pra praia. Todos. Eu, o pai, o povo todo. Inclusive a mãe. E de repente a praia prateava. E tinha mais tainha que gente. E mais comida que fome. E a cantoria da festa:
A tainha taí A tainha taí, ó!
Era só isso. Só esse refrão. E palmas marcando o ritmo. Às vezes tambor e berimbau e capoeira. Na maioria das vezes, só palmas e canto. Em lá maior. Cantando a palavra bonita, o “i” num hiato: tainha. A cauda da palavra cortada depois do “i”. O “ó” soluçado no fim do verso, numa nota mi. Lembro que criei, já moço, uma estrofe pra esse hino. Eram catorze versos, como num soneto. Os quatro primeiros diziam assim:
Traz as tralhas pra praia A canoa pro mar Deixa as coisas no rancho Farofa, iansã, choro, angústia e cachá
De novo eu cortava a cauda da palavra. De novo eu chegava num mi. Nestes quatro versos eu cantava as coisas da pesca e do homem. Nos próximos três, as coisas do homem e do tempo:
Larga dessa leseira Terral, quaresmeira Que há desde o carná
Era um dó que soava nesse “carná”. Daí eu seguia pra volta, pro retorno, pra casa do pescador ao fim de maio:
Valsa com ela em casa E bota na brasa Uma ova pra assar
Esse “assar” parava num si. Essa nota parecia refletir sobre algo. Sobre a pesca. O ritual. A ida e a volta do pai. O silêncio da mãe. E eu, a minha vida, tudo girando ao redor da canoa. Esse era o ritual. A vida precisava passar por isso. O pai, os homens, meus avôs e seus avôs, todos tínhamos que passar maio inteiro no rancho, na pesca, na lida. Mas tínhamos também que voltar. É o que diziam os últimos quarto versos da estrofe:
Quando tudo passar Quando todos voltarem daí, Quando tudo voltar Graças a Iemanja Janaí.
Nesses versos a melodia era quase a mesma do início do canto. Lá e mi. Lá em mim se ouvia, depois do “í” de “Janaí”, de novo o refrão. Já não se ouve mais. O pai morreu. O rancho já tem outros homens. A música sumiu nas vagas do tempo.
O tempo entretanto não levou a tainha. Ao contrário, ele traz o peixe em cada maio de cada ano. E traz os homens pra pesca, as coisas pro rancho, a canoa pro mar. E assim vamos fazendo o lanço no mar do tempo. Fazemos isso desde o século antes do século antes do século antes deste. É muito tempo. Um cardume de anos. E o nosso cerco ainda não acabou. E tão cedo não acabará. A tainha taí, afinal, e por muito tempo estará. Graças a Iemanjá Janaí.
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