Opinião

Aporofobia

Aporofobia

Há situações em que não sabemos o que fazer, em que não compreendemos o que é certo ou errado, em que nosso juízo moral se afunda em dúvidas. Por exemplo: quando nos deparamos com a extrema pobreza. Pedintes, mendigos, moradores de rua: de repente estamos frente a frente com eles – com piedade ou com fúria ou com medo – e aquelas dúvidas nos assaltam. Que postura nos é exigida nesse encontro dramático?

Se você disser que eles são “vagabundos” e que estaremos sendo bondosos ao simplesmente ignorá-los, pois poderíamos ligar pra polícia e exigir sua prisão, então você será um idiota papagaiando um discurso que já morria de velho (e do próprio veneno) há meio século. Se disser que eles vivem assim porque merecem, já que não se esforçaram o bastante, então você soará como um tolo iludido com o conto de fadas de seu solipsismo. Se disser que devemos ter respeito e evitar a violência, física ou verbal, terá dito apenas o óbvio – e terá dito pouco. Se lhe ocorreram somente essas respostas, você não percebeu a profundidade da questão. 

Há muitos anos temos aprendido uma resposta “mais profunda”. Entre aspas: na verdade, a resposta é apenas mais cômoda. Ela nos acomoda ao ver a miséria dos outros e nos ensina a ignorá-la sem culpa. Parte de uma premissa básica: nossa ajuda – nosso impulso de tentar atenuar o drama que bate em nossa porta (ou na janela do carro) – não resolverá nada. É uma lição que parece ter profundidade: ela mostra que o problema é complexo e que a solução está além de nossas forças. E assim estamos absolvidos: “não dê esmolas” – diz a placa no semáforo.

Assim absolvidos damos asas à nossa perversão. Além de ignorar a miséria, nós a espezinhamos. Fincamos lanças nas calçadas, pedras sob os viadutos, cercas em torno dos umbrais. É o repúdio arquitetônico aos miseráveis: garras de pedra eriçadas contra seus corpos, dentes de chumbo rangendo contra sua presença. “Não dê esmolas” – diz sempre a placa que absolve tudo isso – “ligue para o número tal”. 

Todos sabemos que não adianta ligar. Mas a placa, o telefone ali citado, a ilusão de que alguém vai ajudar – e mesmo “salvar” – os miseráveis, tudo isso nos acalma. Ou melhor: anestesia. Não sentimos a dor de ver a miséria alheia. O sinal verde se acende e nós arrancamos, leves e perdoados.

Também eu, confesso, senti a graça desse perdão. Também eu arranquei sem remorsos de muitos semáforos em que neguei ajuda a pessoas famintas. Também eu me deitei nos braços gordos daquela resposta cômoda. Isso até refletir sobre a palavra que dá título a este texto: aporofobia. Foi o Padre Julio Lancellotti quem achou um lugar pra ela em meu pobre vocabulário. Empunhando essa palavra, ele viola os monumentos daquela arquitetura perversa. Esquadrinha as entranhas daquele perdão falso. E mostra que aquela frase escrita na placa é cínica: a miséria é um problema nosso, nós somos responsáveis por isso – dar esmola é mínimo que podemos fazer. Padre Julio dá um outro sentido ao pronome que é sujeito destas orações. Ele resgata o sentido sagrado desta palavra: “nós”. 

Nós não somos apenas os que se defrontam com eles – os miseráveis – e então enfrentam um dilema moral. Nós somos uns e outros: somos todos os homens. Agora compreendo que não apenas meus atos eram aporófobos. Também minha linguagem: meus pronomes eram rotulantes, meu “nós” estava sempre distante do que eram “eles”. 

Nós não podemos aceitar que homens vivam na miséria. Nós não podemos ignorar esse fato. Nós temos que compartilhar essa dor enquanto ela existir. Afinal, ela existe por nossa culpa. A aporofobia é a reação – egoísta, alienada, doentia – à consciência disso. É uma fuga – adrede ou não – dessa culpa. É quase um medo dos ecos abismais da tal palavra sagrada: “nós”. Padre Julio, diante desta palavra, enche-se de coragem. Eis sua grande lição. 

Há situações em que não sabemos o que fazer, em que não compreendemos o que é certo ou errado, em que nosso juízo moral se afunda em dúvidas. Sim, é verdade. Mas talvez essas dúvidas sejam somente o medo de compreender quem somos – nós, todos nós, a humanidade – e o que devemos ser. Talvez a coragem dessa compreensão nos permita encontrar as respostas. Talvez esteja aí a clareza da fé cristã. 

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