Opinião

Beleza pura

Beleza pura

Futebol é sinistro. Liga os pontos & costura os retalhos & conecta tudo com tudo. É só destino não. É também escolha. Ele te faz assumir um lado. Te injeta amor e ódio. Te desmascara. Nego se conhece ao torcer. Busca em si a ideia mais firme. Torce como se fosse mudar o mundo. E muda. Futebol muda o mundo. É sinistro.

Ontem torci pra Argentina. Bagulho era simples: o colonizador ou o colonizado, a zeuropa ou a latinamérica, o rico ou o pobre. Escolhi sempre o segundo. Escolhi os fodidos do sul. Escolhi a gente, mano. Se hay império, soy contra. Sifudê a França. Gol do Messi, gol do Di Maria, tapa na cara da metrópole.

Então notei. Tirando talvez o goleiro, de repente na França ninguém tinha a cara da metrópole. Era um time preto, mano. Time de imigrante. O povo da terra ao sul do Saara jogando de azul. Então mudei. Vira-casaca fulminante. Represa rompida. Raiva inundando a visão. Lembrei do sotaque racista da torcida argentina. Que me chama de macaquito. Que se chama de papá. Que canta xingando as mães africanas. Que tá por aí despejando bosta no twitter. E que tem o talento pra escolher a palavra com o pior cheiro. Talento não, tem na memória a palavra que mais humilha. De repente senti um nojo tão forte que tremi. Quando o MBappé empatou o jogo, foi uma redenção. Vi nele um Zumbi em Palmares.

Mas não era Palmares. Não era Zumbi. Não era uma guerra de raças. Era futebol, mano. Nada mais. Nem só na França nasceram colonizadores. Nem só na Argentina nascem racistas. Os malditos de ontem e hoje andam por toda parte. Inclusive no Brasil. Pensava nisso quando o Messi fez outro. Também quando o Mbappé fez o terceiro. Aí o jogo enlouqueceu. A loucura foi bonita. E a beleza me dobrou. Era só futebol, mano, e era muito.

No fim torci pra ninguém. Isolei o futebol de tudo. Achei uma ilha no meu pensamento e ali pus cada cara que bateu cada pênalti que decidiu a copa. Na ilha. Ali eu não tinha um lado pra escolher. Não tinha amor nem ódio. Nem um mundo pra mudar. Ali era só futebol. E a beleza pura, mano. Pura.

Num mundo talvez um pouco mais belo.

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