Opinião

Brasil: a implosão de um artigo de fé

Brasil: a implosão de um artigo de fé
"O triunfo da morte", de Pieter Bruegel.

Assim como ocorre no campo das religiões, um Estado precisa de fé para se sustentar. As pessoas precisam crer na força e na autoridade do Estado e de suas instituições.


Se a população não acredita na força das decisões administrativas e judiciais para que sejam supridas as suas necessidades, o Estado passa a não ter importância na vida das pessoas. Torna-se apenas um peso a ser odiado e sustentado por obrigação.


Ainda no plano da analogia religiosa, do mesmo modo que uma religião sem crentes se dissolve, um Estado desprezado pela descrença de seus cidadãos mergulha no caos. Seria até desnecessário falar na obra de Hobbes, mas para não tecer argumentos com “ar” de inventor, voltemos rapidamente ao Século XVII para rever a figura do Leviatã: “ (…) a arte do homem(…) pode fazer um animal artificial(…) Mais ainda, a arte pode imitar o homem, obra-prima racional da natureza. Pois é justamente uma obra de arte esse grande Leviatã que se denomina coisa pública ou Estado (Commonwealth) (…) o qual não é mais do que um homem artificial, embora de estatura muito mais elevada e de força muito maior que a do homem natural, para cuja proteção e defesa foi imaginado. Nele, a soberania é uma alma artificial, pois que dá a vida e o movimento a todo corpo (…) A recompensa e o castigo(…) são os seus nervos. A opulência e as riquezas de todos os particulares, a sua força. Salus populi, a salvação do povo, é a sua função(…) a equidade e as leis são para ele razão e vontade artificiais. (…) Enfim, os pactos e os contratos que, na origem, presidiram a constituição, agregação e união das partes desse corpo político, assemelham-se ao Fiat ou façamos o homem, pronunciado por Deus na criação.”


Percebe-se, pois, que um Estado é muito mais do que um conjunto de prédios e servidores. Para que ele se mantenha, deve haver fé na sua existência e autoridade. É preciso que as pessoas acreditem nesse ente quase metafísico, que age a partir de um concurso de vontades ordenadas e de liberdades delimitadas.


Feitas essas digressões iniciais, olhemos por um momento para o retrato do Brasil neste ano de 2022. Está claro, neste momento, que não existe harmonia alguma entre os Poderes do Estado, conforme impõe o artigo 2º da Constituição Federal. O que presenciamos é, sim, um conflito permanente, um cenário de verdadeiro combate entre os três poderes (ou funções) do Estado. Eu diria até, que se trata de um conflito desejado e impulsionado por aqueles que não têm apreço pela ordem democrática.


É bem verdade que as Cortes Superiores, não raras vezes, adotam decisões questionáveis em razão de influência política, o que provoca desgastes à sua imagem. No entanto, se quisermos manter o Estado de pé, é necessário que as decisões judiciais definitivas e prolatadas dentro da esfera de competência dos Tribunais, sejam respeitadas e cumpridas. É imprescindível que se mantenha a autoridade do Estado.


Porém, infelizmente, não é isso o que está ocorrendo. As decisões judiciárias, inclusive de Tribunais Superiores, não raramente estão sendo desprestigiadas e descumpridas. A consequência disso, é que o próprio Estado acaba sendo desacreditado. Por incrível que pareça, os primeiros a descumprirem decisões judiciárias importantes são os outros dois Poderes Estatais. É aí que reside a implosão referida no título deste texto.


O recente caso do Deputado Daniel Silveira é emblemático e bem ilustra o que está sendo tratado aqui. O Supremo Tribunal Federal, no exercício de sua competência Constitucional e, por decisão de seu órgão maior, o Plenário, decidiu pela condenação do referido Réu. O que fez então o Chefe do Poder Executivo? Concedeu um perdão arbitrário, personalíssimo e “sui generis” ao condenado, por se tratar de seu aliado político, sob o argumento de haver “clamor popular”(?) e necessidade de defesa da “liberdade de expressão”(?). Na realidade, o ato Presidencial, em evidente desvio de finalidade, acabou por ofender a Suprema Corte e aprovar as condutas do Réu, condenado que foi por ter atentado contra a própria República.


Já o Poder Legislativo, que poderia funcionar como pacificador, acabou agindo de forma igualmente repugnante. Após a condenação do Réu que, diga-se de passagem, tem vida pregressa repleta de outras condutas ilícitas, a Câmara dos Deputados chancelou indicação partidária para que o mesmo
passe a ser Vice-Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e ainda, membro de mais quatro comissões da casa, inclusive da Comissão de Segurança e Combate ao Crime Organizado(?).


“Um escárnio”, ouvi de muitos durante a semana que passou. Sim, mas não um simples escárnio. Foi do tipo qualificado, um escárnio irresponsável e extremamente danoso ao País. O que a população assiste silenciosamente, é o enfraquecimento da já anêmica e franzina crença no Estado Brasileiro, a implosão de um artigo de fé, praticada por temporários ocupantes de funções de Estado contra o
próprio Estado. Não estamos sendo vilipendiados por inimigos externos. O que presenciamos é uma autodestrutiva guerra interinstitucional. Este é o cenário.


E um Estado fraco, debilitado, permeado pela descrença e indiferença favorece a quem?
A resposta é simples: favorece àqueles que desejam se alimentar dos despojos do Estado, pois quando a população não crê na autoridade e necessidade do Estado, a corrupção se torna tolerável, perdoável. O Brasil passa a ser uma carniça a céu aberto, disponível para as muitas hienas que
habitam não só o Planalto Central, como também as demais esferas públicas dos Estados e Municípios.


Neste ano de 2022 que começou tumultuado e com temperatura em elevação, muitos ingredientes ruins estão sobre a mesa pátria: uma população mansa e desinformada, um Estado bastante debilitado e muito, muito interesse financeiro em jogo. Espera-se que as ruínas das instituições sejam suficientes para manter o regime democrático até o final do pleito eleitoral e que os
ocupantes dos cargos de Chefia do Estado tomem consciência de suas competências Constitucionais e de seus limites funcionais.

Darwinn Harnack

Darwinn Harnack é advogado e professor.

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