Não sei o que dizer depois desta semana Deveria estar indiferente, talvez amortecido Seria mais confortável ignorar o grito que emana Da boca dos famintos, dos doídos, dos esquecidos
Não sei para onde ir depois destes extremismos Deveria beber, dormir, desprezar os intrusos Seria mais inteligente mergulhar em outros abismos Mais escuros, mais frios, mais confusos
Mas não posso com o silêncio estreito O cão enquanto late, não morde Quando cala, é onde a morte fala
Ando desconfiado, meio sem jeito Depois de tudo o que já foi dito Depois de tudo que já foi feito.
Neste dia acordei cedo sem querer. A memória é algo que se desperta em golpes, rajadas de imagens que inundam os olhos ainda contraídos pelo mundo. Chegar ao mundo, todos os dias, dói e começa pelos olhos. Assim como elas chegam, trincheiras se erguem para dar tempo de organizar as defesas. Um novo dia, mais um como tantos outros. Talvez sorrir ajudasse?
Me agonia o tempo passar e não quero lembrar de tudo. Não há razão de uma memória tão presente.
Foi um dia corrido, com alguns descansos tristes e andei encucado com tantas coisas inúteis. Coisas que eu já sabia e a memória me trouxe a palavra ‘trabalho’, que tem sua origem no latim tripalium, uma engenharia feita com três paus que servia para amarrar escravos e açoitá-los, torturá-los.
Eu me preocupo com o trabalho, se estou preso nesses paus e apanhando de mim, da vida. Uma saída que também descobri nestas memórias inúteis é a palavra italiana lavoro, que também tem origem no latim labor, que remete ao esforço no fazer, outros verbos como elaborar e colaborar ou ainda no português, ao lavrar a terra. Esta palavra em sua origem remete ao criar, cultivar, não sem esforço, cansaço e dedicação. Esta saída me alivia um pouco dos pesos de minhas neuroses quando elaboro e colaboro em atividades que não rendem absolutamente nenhum dinheiro. Quando escrevo poemas, crônicas ou qualquer texto que para mim é um lavoro e não um trabalho, que eu mesmo, sem dúvida, não vim aqui para isso, esse doído, esse que devora nosso tempo, dia a dia, nos dando restos de finais de semanas, nos dando noites mal dormidas, nos levando ao orgulho da exaustão.
Mas, eu preciso disso também. Faço parte deste mundo, desta forma de viver e mesmo se eu fugisse para o mato precisaria trabalhar, trabalhar mesmo, para ter o que comer. Não entendo isso, pois não sou dado aos deslumbramentos do passar do tempo, o ócio é algo muito difícil de permanecer e estou sempre entre este conflito do trabalho e do lavoro. Esta distinção, que no cotidiano contemporâneo não encontra diferenças importantes, me vem como um labirinto léxico, onde procuro localizar outra coisa além do fazer, do produzir, da lógica previamente estabelecida. Pois me interessa muito este gesto de criar, de reinventar novos lugares. O que me impede são neuroses em ganhar ou perder, ser útil ou inútil. E muitas vezes, quantas vezes me senti perdido, inútil, excluído.
Mas, sim, posso ganhar a tal da vida num lavoro, eu sei. Mas é como se a única forma de estar moralmente certo é pelo trabalho duro, muitas horas, plano de saúde, aposentadoria, dinheiro guardado, casa, férias, carro, roupas, status. E talvez o leitor não compreenderá minha confusão, pois o óbvio está aí, o que todo mundo quer, o que todo mundo precisa, um trabalho digno, com um bom salário com um bom lugar na teia social.
Mas insiste em mim uma lógica, aquela do desejo, de estar de acordo com ele, de algo que origine o trabalho, o lavoro, pague-se o preço que for, nem que seja com a própria vida para manter o desejo vivo, como fez Antígona, de Sófocles. Uma lógica de louco, talvez. Mas, não há outra possibilidade. Não há outro jeito, não há outra saída, fui tomado pela peste, diria Freud. O peso que isso se impõe em mim é um trabalho torturante, mas esta é minha luta, meu combate. Me livrar dessas amarras, desses açoites, deste senhor em mim que não oferece trégua. É isso.
Venço a luta todas as vezes que estou de acordo com este desejo, quando estou aqui entre minhas palavras, que não são minhas, que estão aí no mundo. Venço quando crio um poema, quando sai uma crônica, quando enfio no meio destas palavras alguma quebra lógica, como quem pisa num degrau e ele quebra, você não cai, mas se vê caindo.
Que minha única dívida é com meu ímpeto em lidar com esse desejo, coisa que não se encaixa, que não se acostuma à normalidade dos dias.
Foi numa língua que não é minha, esta língua estrangeira, distante e estranha que luto, não sem dores, sem marcas e derrotas. Só assim, de um estranhamento, que o novo se apresenta, um texto novo, uma história nova. Arte, meus amigos, é coisa de gente esforçada, gente que subverte, incomoda, desacostuma.
Tantas coisas inúteis. Sim, se fosse útil, não seria arte. Talvez eu não possa mais esquecer.
De tudo o que sou, pai, amigo, homem, psicanalista, um anônimo na rua, um familiar, conhecido de alguém, um ouvinte, falante, um escritor, um sonhador, um idealista, um cansado, um brasileiro, na fila do pão, um jaraguaense, pobre, um rico, um nada, uma história, um passado, um futuro, um presente, um freguês, um bobo, um resto, um mudo, um poeta, atrasado, um triste, um tudo, um deixado, um sedento, escolhido, um vencido, um olhar, jardineiro, um tempo, um rasgo, perdido, amante, odiado, um empolgado, uma gaveta trancada, apaixonado, concentrado, apagado, um vencedor, viajante, andarilho, curioso, uma voz, indiferente, um humano. De tudo, me desnudo de todos esses lugares, funções, destinos e me deixo aqui nestas palavras, um genuíno lavoro.
Criação. Memória. Ando desconfiado, meio sem jeito Depois de tudo o que já foi dito Depois de tudo que já foi feito.
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