Opinião

Nossa mendicância

Nossa mendicância

Também eu vi a entrevista do mendigo. Quem me enviou, um grande amigo, achou engraçada. Eu achei escrota. Não só a entrevista: o interesse no relato, a publicação, a propagação viral. Achei escrota toda a reação a isso.

O mendigo não tinha o direito de expor os tantos detalhes. A moça fez sexo com ele; não deu permissão pra devassar sua privacidade. Homens não têm o direito de contar os feitos íntimos das mulheres com que trepam. Achei que eles soubessem disso. Homens não cansam de me desapontar.

As “revistas” que publicaram a entrevista não deveriam ter feito isso. Não sei dizer se poderiam, dados os limites da liberdade de imprensa. Mas não deveriam. É repugnante. Ouvi dizer que a moça está deprimida diante da repercussão do caso. Ouvi também que ela talvez se aproveite da fama conquistada. Não sei, não a conheço. Só sei que a publicação não mencionava sua autorização.

Mas o que mais me irrita é reação coletiva a isso. A reação do país, das pessoas que conheço, do meu grande amigo. Não se trata apenas de não perceber a violação da intimidade. Trata-se de não compreender o significado disso. Meu grande amigo tem uma orientação política admirável. É um crítico lúcido e contundente dos rumos que o país tem tomado. Mas achou “engraçado” o vídeo. Não percebeu o quanto a misoginia nele implícita (e explícita) reforça os discursos que ele tanto critica. Percebeu, mas relevou, os elogios do mendigo ao presidente.

Tomo esse meu amigo apenas como um exemplo. Muitas pessoas que admiro repercutiram a “proeza” do mendigo. Nós, os que devíamos resistir, estamos “rindo” do episódio. Na verdade estamos atarantados. Lesados. Bocas abertas e olhos perdidos. Somos “pautados” por quem deveríamos combater. Somos também gado: vivemos numa sociedade bovina. Somos todos mendigos, às margens da história, esperando gorjetas de entretenimento.

Nossa mendicância é a síntese desse episódio. Nossos ideais, nossos valores, nossa razão – tudo isso é tão pouco que cabe nos bolsos de nossas roupas maltrapilhas. Estamos espalhados por aí, jogados pelos cantos, esperando passivos a mudança por que deveríamos lutar.

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