Arte

O livro

O livro
Arte de Leandro Paciello.

Maria atravessou o oceano no século XVI da era cristã. Ardia em febre quando seu pai avistou a terra americana. Dom Manuel atracou a nau na baía que os carijós chamavam Babitonga e pediu a eles que salvassem sua filha. Os índios a levaram ao pajé Jaraguá da grande taba de Iraçu.

Ela tomou o chá e suas faces coraram imediatamente. Seus olhos brilharam. Seus lábios sorriram. Foi quando o grande cacique a conheceu. Naquela noite todos cumpriram ritos de gratidão em torno do fogo às margens do Itapocu. Exceto Maria que se deitou na rede. E Iraçu que se embalou na nudez da pele que nunca vira assim tão alva.

De volta à Espanha Maria deu à luz um menino. Mas nenhum homem cristão ou mouro jamais tocara seu corpo. Nenhum traço mouro ou cristão havia no rosto recém-nascido. Todos creram na virgindade da mãe e na divindade do filho. Este cresceu cultuado na fronteira entre as duas grandes religiões. Aos trinta anos escreveu o livro. Num poema sobre a origem e o fim do mundo revelou um deus que traria a paz. Um deus que era a própria paz.

Então o mataram. Declararam o livro proscrito. Queimaram todos os pergaminhos que o traduziram nas línguas da Ibéria. Exceto aquele que Maria trouxe ao fugir na caravela que atravessou o oceano. Quando desembarcou estava ainda mais febril que da primeira vez. Entregou o livro a Iraçu e morreu em seus braços.  

Poucos anos depois a grande taba foi exterminada por homens da cor de Maria armados de pólvora e cruzes. Iraçu e seus guerreiros sucumbiram. Mas houve mulheres e crianças que fugiram trazendo o livro de cor. Conta-se que ainda hoje seus versos são cantados por povos ocultos na grande mata. Guardiões do grande tesouro. Sementes de esperança no chão da América. 

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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