Não é novidade que a pandemia da COVID-19 trouxe à tona alguns indicadores preocupantes sobre a violência dentro dos lares em todo o mundo. No Brasil, o prolongamento das consequências sociais, sanitárias e do impacto econômico decorrentes da ineficiência do Estado brasileiro no enfrentamento da pandemia faz do lar um ambiente hostil e de total desesperança para muitos que estão em situação de violência doméstica e familiar.
Segundo pesquisas publicadas pela imprensa nacional e internacional, bem como relatórios de organizações internacionais e organizações direcionadas ao enfrentamento da violência doméstica, houve um aumento da violência doméstica e familiar durante a pandemia da COVID-19. A ONU Mulheres elaborou um documento sobre os impactos e implicações da pandemia e da desigualdade de gênero, demonstrando a dificuldade de mulheres denunciarem seus agressores durante o isolamento social. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou um estudo que identificou um aumento de 431% de relatos de brigas de casal por vizinhos entre fevereiro e abril de 2020, corroborando a tese de incremento da violência doméstica e familiar no período de maior restrição durante a pandemia.
Antes da pandemia da COVID-19, dados sobre violência contra crianças e adolescentes informavam que 75% das crianças com idade entre dois a quatro anos em todo o mundo estavam submetidas à disciplina violenta por pais e cuidadores, e, entre estas, 250 milhões estavam submetidas a punições físicas, sendo a violência responsável pela morte de uma criança ou adolescente a cada sete minutos no mundo (UNICEF, 2017). Com quarentena, afastamento das atividades escolares, restrições no convívio social e um contexto de completa insegurança (alimentar, econômica e social), a situação de vulnerabilidade de crianças e adolescentes ficou ainda mais grave.
Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância, da UNICEF e do Instituto Sou da Paz, o número de violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes cresceu brutalmente com a pandemia. Em maio de 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou o balanço do Disque 100 (Disque Direitos Humanos) com dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. Dos 159 mil registros feitos ao longo de 2019, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018. A violência sexual figura em 11% das denúncias que se referem a este grupo específico e acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, mas é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias. O suspeito é do sexo masculino em 87% dos registros e, igualmente, de idade adulta, entre 25 e 40 anos, para 62% dos casos. A vítima é adolescente, entre 12 e 17 anos, do sexo feminino em 46% das denúncias recebidas. Estes dados, referentes ao ano anterior da pandemia, dão conta do quanto agravou a situação das crianças e adolescentes em isolamento social.
Simultaneamente ao aumento das violências contra mulheres, crianças e adolescentes, houve aumento também de maus-tratos contra animais domésticos. Segundo dados da Delegacia Eletrônica de Proteção Animal do Estado de São Paulo, em 2020 houve um aumento de 81,5% nas denúncias de violência contra animais não humanos.
Para além do contexto pandêmico, o que essas violências têm em comum?
Há estudos, nos campos da psicologia e psiquiatria, que demonstram a existência de uma conexão entre a violência interpessoal e a violência contra animais não humanos. Estes estudos resultaram em uma teoria, denominada de Teoria do Link (Teoria do Elo), que aponta uma conexão entre essas violências. Daniel Helmann e Nathan Blackman publicaram um artigo intitulado Enuresis firesetting and cruelty to animals: a triad predictive of adult crime (1966), resultado de um estudo que tinha por objetivo a prevenção de crimes futuros com base na prática de determinados delitos, entre eles os maus-tratos contra animais.
A partir desse elo, de forma preditiva, demonstra-se a presença de violência interpessoal quando um animal doméstico sofre maus-tratos. Mais tarde os psicólogos Frank Ascione e Phil Arkow publicaram o livro Child abuse, domestic violence and animal abuse: linking the circles of compassion for prevention and intervention (1997). Para Ascione, “no nível das relações interpessoais, há evidências crescentes de que o abuso de animais é frequentemente presente em famílias e comunidades marcadas por abuso infantil, negligência e violência entre parceiros adultos íntimos e em relação aos idosos.”
No Brasil, o primeiro estudo que demonstrou empiricamente a presença de uma conexão entre crueldade contra animais não humanos e violência doméstica, foi a pesquisa realizada pela psicóloga Maria José Sales Padilha, publicada no livro Crueldade com animais x violência doméstica contra mulheres: uma conexão real (2011).
A Teoria do Link aponta o elo entre essas violências, demonstrado por vastas pesquisas empíricas que sustentam suas premissas teóricas. No entanto, para um enfrentamento realmente comprometido com a mudança da realidade material de vítimas dessas violências é preciso ir a fundo e trazer à luz a raiz dessa conexão. Abordagens ecofeministas que consideram as diferenças de raça, classe, gênero e espécie como fatores agravantes de desigualdades sociais, apontam interconexões entre as opressões e por isso apresentam uma importante chave de leitura para pensar as relações humanas com a natureza e com outros animais humanos e não humanos.
Em perspectiva Ecofeminista Animalista, é possível ampliar o espectro de observação do fenômeno da violência de gênero e enxergar que a lógica de dominação que atravessa os diferentes ismos de dominação (sexismo, machismo, racismo, especismo etc) oprime aqueles que estão “de baixo” de estruturas opressoras. Dessa forma, mulheres, crianças e os animais não humanos são percebidos como vulneráveis de um mesmo sistema de dominação.
A violência contra mulheres, crianças e adolescentes, assim como a crueldade contra animais não humanos estão fortemente presentes nos lares brasileiros antes mesmo da pandemia da COVID-19. A circunstância desta crise sanitária, além de demonstrar a ineficiência do Estado brasileiro no enfrentamento da pandemia e de seus impactos sociais, aumentou a situação de vulnerabilidade de todos os indivíduos em situação de violência doméstica. Pensar a violência doméstica e os maus-tratos contra animais não humanos a partir dessas perspectivas teóricas e empíricas, possibilita avançar no enfrentamento e na prevenção dessas violências, com políticas públicas multidisciplinares e multisetoriais através da atuação de diferentes serviços e atores sociais.
Para mais informações e reflexões nesse sentido, siga o Instagram @observatorio.ecofeminista.
Comentários:
Parabéns. Excelente conteúdo.