Opinião

Serjão Santana: A idade e a brasilidade

Serjão Santana: A idade e a brasilidade

Quando cheguei na casa do Juca, entendi por que ele me chamara tão desesperadamente. Ele precisava conversar. Mais que isso: precisava desabafar. Mais ainda: precisava xingar. Dado o ardor dessa necessidade, achei que o destinatário dos xingamentos fosse um crápula consumado – o Hitler, o Mussolini, a personagem da Lília Cabral na novela. Mas não: Juquinha serviu a taça de rosè e lançou seus impropérios a um alvo bem menos provável.

– Serjão, viste o gol que perdeu o Vini Júnior?

Eu não tinha visto. Na verdade, demorei um tanto pra atinar quem era o tal Vini Júnior. Mas logo captei. Ele falava do brasileiro que joga no Madri. Dizia que no último jogo, valendo a liderança do espanholzão, ele perdeu um gol imperdível. Juquinha falava do rapaz com raiva. Via nele a suma das ilusões futebolísticas. Uma espécie de mentira subterrânea e eterna personificada em um jogador. Uma mentira sintetizada numa palavra que, nos lábios do Juca, assume a acepção mais depreciativa: brasilidade.

– Aceita uma taça? – ele me perguntou oferecendo um rosè.

– Cerveja, por favor.

Juca vê a brasilidade como um dos grandes males do universo. O pachequismo, outra palavra de que ele abusa, seria uma pérfida narrativa para inverter o sinal moral dessa nuvem negra e tóxica. O pacheco insiste em tratar a brasilidade como algo positivo. Juquinha, entre os goles de rosè, pinta os pachecos como seus inimigos mais empedernidos. Galvão Bueno, em particular, seria quase um Goebbels.

– Serjão, a brasilidade tem que acabar. Vini Júnior patea como mi abuela – disse, citando alegadamente um jornalista espanhol. – Tem que jogar no Madureira.

Engraçado ele se irritar tanto com o Vinícius. Juca torce pro Barça. Deveria agradecer as pixotadas do atacante rival. Mas não, na verdade Juquinha não torce pro Barça: torce pro Messi. Forjou seus valores futebolísticos a partir da necessidade de considerá-lo o maior da história. Especialmente da necessidade de considerar esta época, a atual, como a melhor. É, no fundo, um apego pelo pequeno abrigo do presente, um medo do vasto horizonte do passado, um jeito de se esgueirar pela floresta do futuro. É, também isso, uma narrativa. Uma contranarrativa. Um revisionismo histórico. Um processo que passa pela destruição de antigos valores e pela fixação de novos.

– Serjão, Pelé é uma farsa.

Eu dei fungada profunda após um gole de cerveja. Lembrei de 58. Não do Pelé, mas do Didi. Fisicamente, ele era muito parecido com o Vinícius; talvez por isso a lembrança instintiva. Passado o Mundial da Suécia, ele também foi contratado pelo Real Madri. Ficou por lá três meses. Fechou o pau com o Di Stéfano, que mandava no time, e voltou pra cá. Brasilidade, diria o Juquinha.

Na próxima Copa, em 62, o argentino jogaria com a Seleção espanhola, que enfrentou a brasileira. Di Stéfano, lesionado, não participou do jogo. Didi, sim. Com 33 anos, ele ganharia aquele jogo e outros três, tornando-se bicampeão mundial. Sempre como titular e líder daquele time fantástico, vencedor de duas Copas, o maior que já vi.

Salvo pela aparência, não há comparação possível entre o Vinícius e o Didi. São jogadores de posições distintas. E, mais que tudo, de patamares distintos: Vinícius é um bom garoto, um atacante veloz com algumas virtudes e evidentes defeitos; Didi é um semideus. Em todo caso, Juca diria a respeito de ambos: “são exemplos de brasilidade”. Diria com razão, admito. Só não sei se teria razão bastante pra ver que, desde essa perspectiva, a brasilidade assume um valor bem outro.

– Chega, não tenho mais idade pra isso – foi só o que eu disse, reagindo à sequência de impropérios que o Juquinha desferia a sei lá quem. – Tens um pouco daquela luisalvense?

Minha idade me deu certa manha pra lidar com as palavras. Não são elas que fazem a história. Ao contrário: é a história que vai preenchendo, como um desenho nos limites da moldura, o sentido das palavras. Juquinha ainda vai entender isso. Quando for mais velho. Quando notar que também o Messi se tornou só uma memória cada vez mais distante. E quando parar, queira Deus, de beber de rosè.

Serjão Santana

Serjão Santana jogou futebol amador em Itajaí. Fã dos irmãos Rodrigues, abraçou a crônica esportiva. É marcilista e botafoguense.

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