Maria me convida pra ir ao cinema e eu, sei lá por quê, aceito. Tudo começou por causa desse grave erro.
Na fila da pipoca recebo um whats do Jaco: “Medina na água”. Eram as semifinais da etapa de El Salvador do mundial de surfe: o Gabriel contra o Colapinto, o Filipinho contra o Ítalo. Três brasileiros entre os quatro concorrentes. E eu no cinema vendo top gun!
Começa o filme com o Tom Cruise dando uma banda de motoca. Daí ele embarca no avião mais rápido do mundo. Daí ele dá uma banda alucinada e atinge a maior velocidade que um ser humano já alcançou. Daí o avião explode e ele salta de paraquedas.
Dou uma olhada no celular. Mensagem do Jaco: “Medina roubado”. Penso comigo: porra, de novo? Não resisto a dar olhada no site da WSL. Transmissão ao vivo. Fico entre o Tom Cruise na telona e o Medina na telinha.
Na verdade, quase só na telinha. Até que a Maria me cutuca: “o Tom tá bonitão, né?” A disputa tinha acabado naquele instante. O Medina roubado e eu puto da cara. Então contemplo o Tom profundamente. Ele tem um nariz enorme e torto. E fica piscando o tempo todo como se fosse ter um ataque epilético. Eu só respondo: “ã-hã”. E volto pro celular.
Maria me cutuca mais forte: “presta atenção, esquece o surfe”. Começava a bateria entre o Ítalo e o Filipe. Mas obedeço à patroa. Paro pra ver o filme. Tom Cruise e meia-dúzia de garotos fortes sem camisa jogam futebol americano numa praia. Penso comigo: não acredito que eu tô vendo isso. Dou uma espiada no fone. O Filipe tirou uma boa nota. Deve ter pego uma onda irada. Mas eu não vi!
Se bem que eu não tava preocupado com essa disputa. Ainda remoía a derrota do Medina. Ele precisa da vitória. Tem que somar pontos pra chegar entre os cinco primeiros no fim da temporada. Mas a WSL não quer deixar. Quer um americano campeão mundial. Por isso o roubo em G-land. Por isso o roubo agora. Deram a vitória pro Colapinto (que tem esse nome latino obsceno, but is from USA, oh yeah). E eu não vi! O Medina se matando pra chegar ao top five e eu me afogando nos clichês do top gun…
Falando em se matar, enfim começou a batalha. Digo, no filme. Quatro aviões têm que explodir uma usina nuclear num país inimigo não identificado. Eles voam em rasantes por um vale estreito e cheio de curvas. Sobem uma montanha. Descem pelo outro lado. Explodem a usina. Sobem outra montanha. Essa segunda subida parece ser o clímax. A cena é exagerada pacarai. Até a Maria comenta: “meu Deus, ele precisa gemer tanto assim?”
Enquanto isso Filipinho confirmava vitória sobre o Ítalo. Penso comigo: beleza, acabou o filme, agora é só esperar o Tom Cruise dar um beijo na gata e ver a bateria final em casa. Mas me enganei. O filme não tinha acabado. O avião dele é abatido. Um dos garotos decide fazer um resgate heroico. Os dois caminham (sim, a pé) em território inimigo e acham um avião velho, do tempo do primeiro top gun. Eles decolam perseguidos por cinco aviões negros de última geração. Tom Cruise dá uns cutbacks e abate quatro deles. Mas o último é brabo e vai na cola. Finalmente o herói é encurralado.
Por um instante eu lavei a alma. Pensei comigo: porra, que baita final! O Tom Cruise foi morto! O clichê foi morto! Nasceu uma nova era! Pura ilusão: meu entusiasmo não durou mais que um instante.
Não conto qual foi o final, afinal. Não dou spoiler. Só conto que o americano venceu. Digo, no surfe. Colapinto ganhou do Filipinho na final, afinal. Ganhou roubado. De novo.
Fiquei com tanta raiva que xinguei cada ianque que me veio à mente. Do Elon Musk ao Louis Armstrong. “Wonderful world é o caralho”, berrei emputecido. Até que a Maria me ofereceu um chope. Depois do terceiro ela me mostrou que o pobre Louis não merecia aquilo. E que o Musk nem é americano. Já em casa, talvez inspirada pela cena final do top gun, ela me fez uns cafunés. E dormi sereno, sem raiva de ninguém.
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