A nova novela da Globo – ‘Império’ – propõe um dilema tipicamente empresarial, se bem que não apenas empresarial. Na verdade, pelo que me disseram, a novela não é nova: é requentada. Sei lá, não vejo novelas desde Tieta, ou Gabriela: era alguma baseada num livro do Jorge Amado. Não vi, não vejo e não verei Império. Só conferi a propaganda. E umas cenas aqui e ali: aqui e ali até que há umas boas cenas.
O Comendador Alexandre Nero é o dono de uma grande empresa. Seus dois filhos, um rapaz e um garota, são candidatos a sucedê-lo. A mulher dele, a pérfida Lília Cabral, prefere o filho, também ele um salafrário. A filha, preferida do pai, parece ser boazinha. Mas há ainda uma outra provável filha nascida antes do casamento que, parece, vai apimentar a disputa. Pelo que entendo de novela, esta última pode acabar como CEO.
O Comendador, coitado, enfrenta um problema que atormenta muitos empresários. O sujeito trabalha a vida inteira e constrói seu império. Mas sempre chega a hora de passar o cetro. Então ele olha pros filhos, genros, noras e netos, e pensa: “hum, sei lá, nenhum deles parece ser o administrador ideal”. É a sucessão nas empresas familiares. Um problema importantíssimo e, não raro, bastante grave. Na novela, o problema é apimentado pela trama sempre canastrona do Aguinaldo Silva. Pobre Comendador! Sorte sua que tem a Marina Ruy Barbosa pra fazer um cafuné de vez em quando.
Meu último artigo falava de empresas familiares. Eu elogiava o modelo; ou melhor: eu destacava suas vantagens em relação à governança tecnocrática que, em regra, adotam as grandes empresas. Nas empresas familiares existe uma relação pessoal com o negócio: história, honra, nome – tudo isso se acrescenta ao, e se confunde com, o interesse econômico no sucesso da empresa.
O problema desse modelo é a sucessão. Um certo arranjo familiar pode ser propício ao desempenho da empresa. Uma geração depois, a mesma família terá necessariamente um arranjo diverso – e possivelmente menos propício. Mais uma geração e tudo pode virar do avesso: a crise familiar torna-se a crise empresarial – e vice-versa. E aí?
O pai, junto aos filhos, administra bem o negócio. Mas ele falece, os filhos assumem, os netos entram na empresa: a instância de poder está, neste estágio, bem mais suscetível a fissuras. Os filhos falecem, os netos assumem, os bisnetos torram as fortunas: neste cenário a empresa é completamente outra, se comparada àquela erguida pelo patriarca. Os laços familiares se enfraquecem. As disputas se agravam. A ligação entre família e empresa, antes uma virtude, passa a ser o problema: inveja, vaidade, ressentimento – tudo isso passa a influenciar a gestão do negócio.
Como impedir que isso aconteça? Como evitar que a inevitável sucessão de gerações distorça o modelo que determinou o sucesso do negócio?
Essa questão é uma das mais complexas da história. Não há exagero nesta afirmação. As mais importantes instâncias de poder da humanidade eram familiares: as monarquias, as teocracias, os senhorios feudais, as máfias – as instituições em geral são altamente inclinadas a estabelecer linhagens. Nas empresas ocorre o mesmo. O capitalismo não reverteu essa tendência. Ao contrário: o sistema jurídico de matriz capitalista, com suas regras de sucessão hereditária, preserva e acentua essa tradição.
Tradição é uma boa palavra. Ela carrega um sentido ambivalente. Por um lado, é positiva: a família é uma instituição humana de alta capacidade para transmitir valores e, assim, preservar aqueles que sejam decisivos à evolução social. Por outro, é negativa: os métodos de estabelecer tais tradições são carregados de determinismos preconceituosos: a misoginia, a primogenitura, a distinção entre filhos “legítimos” e “ilegítimos”, entre tantas. Esse conjunto de valores preconceituosos é o berço das maiores mazelas da atualidade: o racismo, o supremacismo, a intolerância religiosa e cultural. Enfim, uma determinada instância de poder, ao lidar com a sucessão de gerações, estabelece tradições que pretendem preservar tal poder – e a história é, assim, um espetáculo dessas tradições. Mas quantas delas são um exemplo de sucesso? Pensem na mais famosa linhagem do mundo ocidental: a Rainha Elizabeth tem mais de noventa anos e seu sucessor é Charles. Charles!
O problema da sucessão, nas instituições familiares, é tão decisivo quanto complexo. Desconheço tradição familiar que, ao responder a esse problema, sirva como um modelo reconhecidamente aconselhável. Há casos de êxito, claro, especialmente entre empresas. Mas empresas são entes jovens no quadro da história. São raríssimas as empresas em cuja instância de poder se sucederam três gerações. E o que são três gerações – menos de um século – na história da humanidade?
Em suma: talvez o Comendador devesse simplesmente vender seu império. É verdade que, se ele fizer uma boa escolha entre seus filhos, há boas chances de que esse império cresça ainda mais; sugiro a filha nascida antes do casamento: ela tem olhos tão puros. Em todo caso, se ele vendesse a empresa, tudo ficaria bem. Por um lado, o império cairia nas “mãos” do “mercado”, que haveria – segundo a crença liberal – de alocar os recursos de forma “ótima”. Por outro, cada filho teria sua fortuna, inclusive a maldosa Lília Cabral, que provavelmente iria de mudança pra Paris. Já o Comendador, esse danado, passaria o resto dos seus dias numa praia sob as carícias de Marina Ruy Barbosa.
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