Arte

Cecília Cortez: A geografia do supermercado.

Cecília Cortez: A geografia do supermercado.
Arte de Joana Luna

Caminho entre prateleiras cheias de cores e cheiros como um campo de flor. Empurro o carrinho com a elegância que posso. Parto da palidez polar do setor de gelados rumo a latitudes mais calorosas. Não sei se vou ao açougue ou ao corredor das verduras. Desacelero o passo diante de delícias supérfluas. Noto uma embalagem em que uma moça linda parece voar como a Nadia Comaneci. Penso: tudo é ilusão. E me horrorizo com o preço do chocolate meio amargo.

Meu carrinho vai quase cheio. Range uma das rodas criando uma melodia metálica. Não me aborrece. Estou tranquila porque o caminho que segui foi o que planejei. Conheço bem a geografia do supermercado. Sei dos segredos dos seus tantos recantos. Sou ótima em ordenar as diversas etapas do meu curso. Primeiro a higiene e o odor amargo dos químicos. Depois os alimentos grosseiros, os grãos e os óleos e os pós. Então os gelados onde alivio o meu quase cansaço. Daí às verduras e ao açougue, ou vice-versa. E finalmente às guloseimas e às bebidas. Comprei um malbec argentino a bom preço: levei doze garrafas.

Não é muito. Terei tempo pra beber. Tempo não me falta. Estou sozinha. Leio um livro ou faço um bordado ou ligo a tv. E sempre tenho todo o tempo do mundo. Bom então é ter também um vinho. Não bebo muito. Não me embriago. Uma taça e depois outra e outra. E foi-se o dia. Tomo um banho e vejo a novela. Tomo mais duas ou três taças. Com chocolate meio amargo.

Caminho entre prateleiras monótonas. Os cheiros das coisas se misturam num odor ruim. A melodia da roda do carrinho me enlouquece. Detesto saber que apenas segui o caminho que planejei. Sempre. O namoro, o casamento, os filhos, a felicidade de manual. Não, eu não planejei o divórcio. Foi ele, naquela tarde, que disse que não me amava, não mais. Não planejei que meus filhos seguissem suas vidas lindas e distantes. Não planejei a solidão. No fim, eu vejo, nada saiu como planejado.  

Procuro nas prateleiras um bálsamo que aplaque a dor. Uma soda tão cáustica que apague as manchas de meus arrependimentos. Uma porta, uma pequena porta como a de Alice, por onde eu pudesse voltar ao passado. E então pudesse dizer a mim mesma: “não planeje, não siga os manuais, não ande sempre pelos mesmos e velhos caminhos”.

Então me ocorre um pensamento. Ou um sonho. Eu subo sobre as compras do carrinho e tiro as roupas e salto sobre cada prateleira, leve e bailarina como Nadia Comaneci, e derrubo todas elas e devasto a geografia do supermercado e gargalho diante das ruínas de seus malditos produtos inutilmente coloridos. E volto a mim. E apenas decido empurrar o carrinho. E entro na fila do caixa.

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