Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi o vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, (…) vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a Terra, e na Terra outra vez o Aleph, e no Aleph a Terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto em conjectura cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.
(Borges, Jorge Luis).
Em 1949, o Argentino Borges publicou “El Aleph”, um conto belíssimo e repleto de simbolismo a respeito de um encontro com todo o tempo e espaço fundidos em um único ponto.
Além da estética, o que encanta é uma espécie de identificação, não se sabe vinda de qual local do íntimo, uma espécie de senso de que sim, o eterno é sempre aqui e agora.
Da mesma forma, todos já passamos por momentos na vida em que o tempo perde sentido. Tudo parece acontecer naquele exato espaço-tempo, como que em uma aniquilação de memórias e demoras. E isto não é um dom, isto é humano.
Tanto é assim, que em 1922, Hermann Hesse, um Alemão naturalizado Suíço e Prêmio Nobel de Literatura, publicou o romance Siddharta (1922), no qual também descreveu, a seu modo, a percepção de um ponto-momento no qual o universo estava condensado em um rosto:
Govinda já não enxergava o semblante de Siddhartha, seu companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros toda uma uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e, todavia, davam a impressão de estar presentes simultaneamente, rostos que a cada instante se modificavam, se renovavam e, contudo, eram sempre Siddhartha. Via a cabeça de um peixe, uma carpa com a boca semiaberta em infinita dor, peixe agonizante, de olhos vidrados. Via o rostinho de uma criança recém-nascida, vermelho, enrugado, a ponto de chorar. Via a fisionomia de um assassino, no momento em que varava com a faca o corpo de sua vítima e, ao mesmo tempo, via esse criminoso ajoelhar-se, algemado, para que o algoz o decapitasse com um só golpe de terçado. Via os corpos desnudos de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates de desvairado amor. Via cadáveres prostrados, imóveis, gélidos, vazios. Via cabeças de animais, de javalis, de crocodilos, elefantes, touros, aves. Via divindades, Krishna, Agni… Via todos esses vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada qual a acudir o outro, a amá-lo, a odiá-lo, a destruí-lo, a parí-lo de novo. Cada qual expressava o desejo de morrer, era apaixonada e dolorosa a profusão de alternâncias efêmeras e, no entanto, não morria, apenas de modificava, renascia uma e outra vez, tomava aspectos sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre uma e outra configuração.
Mas não precisamos citar apenas autores do Século XX, podemos voltar ainda mais no tempo e chegar aos registros do Srimad-Bhagavatam que remontam a 5.000 A.C.
Nesse grande épico da cultura Indiana, constituído em 18.000 versos divididos em 12 cantos, há um trecho em que Yasoda, mãe do menino-deus Krishna (Krsna), enxerga todo o universo dentro da boca de seu filho:
Quando Krsna abriu amplamente sua boca pela ordem da mãe Yasoda, ela viu dentro de sua boca todas as entidades móveis e imóveis, o espaço exterior e todas as direções, bem como as montanhas, ilhas, oceanos, a superfície terrestre, o vento a soprar, o fogo, a Lua e as estrelas. Viu os sistemas planetários, a água, a luz, o ar, o céu e a criação. Ela também viu os sentidos, a mente, a percepção sensorial e as três qualidades conhecidas como bondade, paixão e ignorância. Viu o tempo designado às entidades vivas, viu o instinto natural e as reações do karma, e viu os desejos e as variedades de corpos, móveis e inertes.
(Srimad-Bhagavatam).
Para mim, o Aleph mora nos olhos. Digo isso porque foi justamente nos olhos negros de uma menina de rua que senti a vida de sua mãe e de todas as suas avós. Vi que elas também eram minhas mães e avós e que aquela criança também era minha irmã, minha mãe e minha filha. Vi que toda a dificuldade que ela passava era também minha dificuldade, e que todo o mal que lhe era feito, também era a mim dirigido. Vi que cada mulher é sempre irmã, filha, mãe e avó de todos nós. Vi que cada pessoa jogada na calçada e que pede por comida, é minha extensão e, justamente a reação de sofrer e de se machucar pelo outro, é que acabou criando uma casca de ferida, uma verdadeira couraça protetora sobre os corações urbanos.
Foi também olhando nos olhos de um animal maltratado, que vi meu mamífero medo de dor e de rejeição; que entendi estar muito mais próximo da imagem e semelhança dele, do que a de qualquer deus; que a comunicação verbal é um modo muito limitado de compreensão das formas de manifestação da vida; que tudo o que é vivo deseja viver e que tudo o que é vivo é como eu e você.
Há quem busque por mundos distantes a serem explorados ou novas dimensões virtuais ou espirituais, mas não se pode esquecer de ter olhos frescos e atentos para apreciar a beleza que já está aqui, mutável, oceânica e, por isso, certas vezes, assustadora. Uma beleza feita de terra, de líquidos, de fogo, de folhas e de vento.
É preciso desacostumar os sentidos, relembrar olhos e ouvidos das belezas antigas, aquelas que não mais surpreendem por serem constantes, próximas, comuns. É preciso voltar a sentir cheiros, gostos e toques tidos como normais. Afinal, se lembrássemos dos nossos olhos de criança, teríamos tantas surpresas e encantamentos que, parafraseando Eduardo Galeano, a gente precisaria até de ajuda para enxergar.
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