Tu não tens de ser bom.
Não tens de caminhar de joelhos
Por quilômetros a fio através do deserto, com arrependimento.
Só tens de deixar o suave animal do teu corpo
Amar aquilo que ama.
Fala-me de desespero, do teu, e eu falar-te-ei do meu.
Enquanto isso, o mundo continua.
Enquanto isso, o Sol e os límpidos cristais da chuva
Avançam através das paisagens,
Sobre as planícies e as árvores profundas,
As montanhas e os rios.
Enquanto isso, os gansos selvagens, bem alto no límpido céu azul,
Dirigem-se novamente para casa.
Quem quer que sejas, não interessa o quão solitário,
O mundo oferece-se à tua imaginação,
Chama por ti como os gansos selvagens, áspero e emocionante –
Vezes sem conta, anunciando o teu lugar
Na família das coisas.
(Mary Oliver).
Nenhum animal nasce bom ou mau. Não, não existe isso de pecado original. Ninguém “nasce em pecado”, não há mácula congênita, não existe culpa, peso, rocha ou cruz alguma a ser carregada por essa existência.
Não existe um só homem sobre o solo terrestre que precise ficar escravizado em louvores para ver-se agraciado ou protegido por alguma divindade. Não existe deus algum que tenha criado humanos para homenageá-lo e louvá-lo. Se existisse, esse monarca egocêntrico não teria qualquer atributo divino.
Certa vez, com o costumeiro acerto, disse o velho Quintana:
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo…
Nem mudar água pura em vinho tinto…
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Com o martelo em punho, cabe dizer mais: não existe um jardim chamado céu, tampouco uma masmorra denominada inferno. Nenhuma divindade onipotente permitiria isso. Por essa razão, renunciar a esta vida fresca e pulsante, em troca de promessas de reinos futuros nunca foi uma escolha inteligente.
O propósito da vida não é passar por tormentos ou testes para ser admitido em algum paraíso. Tampouco é objetivo tornar-se santo, ficar rico, casar ou ser feliz. A vida não é meio para coisa alguma, exceto para ela mesma. A razão da vida é viver. Não há meta, não há linha de chegada e não há vencedores, mas apenas algo que respira, sente e é sentido, neste momento e desta forma.
Ao contrário do que se apregoa, a arte de bem viver requer a atitude de soltar as mãos da margem do rio e boiar com a correnteza, assistindo a paisagem que muda junto com as idades. Não há disputa a ser vencida além dos jogos que nós mesmos inventamos desde a infância até a vida adulta. Não há necessidade de remar contra a correnteza, embora o homem faça isso o tempo inteiro, de abdômen contraído, como que sob hipnose.
Jogar bagagem fora. Evitar coisas e desejos de coisas, distinguir necessidades de caprichos. Viver com pouco, mesmo que se tenha ou ganhe muito. Ser natural, sentir-se o bicho que é, apesar das muitas roupas culturais que o ocultam. E perceba: nada se enxerga de cima para baixo, é preciso abaixar-se para ter presença neste mundo sem se converter em propriedade dele.
Ao fim e ao cabo, não há outro caminho para a comunhão das gentes e destas com a natureza, senão o da compreensão daquilo que é, do jeito que é, com o amargor e a doçura inerentes à visão crua do contexto do existir.
Eu sou o inseto em metamorfose na superfície do rio,
e sou o pássaro que, quando chega a primavera,
retorna a tempo para devorar o inseto.
Eu sou a rã a nadar feliz nas águas claras da lagoa,
e também a serpente que, aproximando-se em silêncio,
alimenta-se da rã.
Eu sou a criança de Uganda, pele e ossos, nada mais,
as pernas finas como varas de bambu,
e sou o traficante que vende armas mortíferas a Uganda.
Eu sou a menina de doze anos, refugiada num pequeno barco,
que se atira no oceano depois de ser estuprada por um pirata,
e sou o pirata cujo coração é incapaz de ver e de amar.
Para que eu possa ouvir todos os meus gritos e todos os meus risos de uma só vez,
para que eu possa ver que a minha alegria e a minha dor são uma só.
Por favor, chamem-me pelos meus nomes verdadeiros,
para que eu possa despertar,
e para que assim permaneça aberta a porta do meu coração,
a porta da compaixão.
(Thich Nhat Hanh).
E assim é, porque tudo é instrumento de manifestação da mesma vida. Seja o algoz ou a vítima, o predador ou a presa, a mãe de todas as formas vai mudando de aparência, vai se alterando por meio de nascimentos e mortes como as imagens de um caleidoscópio, mas é sempre a mesma, aquela que fez parir incontáveis formas antes de nós e que preenche cada fio da enorme teia de relações entre todos os seres, desde a mosca que teima em voar contra o vidro da janela, até o cão que nos acompanha durante a leitura e todos aqueles que existem, mesmo sem tomarmos conhecimento.
“O som é o mesmo,
Mas sua expressão é diferente
Através de diferentes instrumentos.
Assim é com o Ser.”
“Não há diferença
Entre aquilo que habita o interior de um pardal
E aquilo que habita
No corpo de um homem.
Dois instrumentos,
Um grande e outro pequeno”.
(Wu Hsin – Viveu entre os séculos V e III A.C.)
Esse é o entendimento, a percepção de que “o outro” não passa de um espelho feito de carne e de ossos, mas também de pelos, de penas, de escamas, de folhas e de raízes. É o dar-se conta de que o milagre é justamente a indescritível imanência daquilo que permeia todos os vultos que se alastram, correm, voam e nadam por todo esse planeta que conhecemos como Terra.
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