Opinião

Darwinn Harnack: O Bicho Que Transborda

Darwinn Harnack: O Bicho Que Transborda

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

(Manoel de Barros).

Fora da cidade as conversas soam longe, costumam planar com o vento e se reproduzir em ecos. Hoje, no início da manhã ouvi gritos de vizinhos distantes, mais uma briga doméstica. Pensei: transbordaram.

Nada de anormal, afinal, o homem é um bicho que transborda (sim, reitero, é um bicho). E o seu transbordamento é interessante, porque além de expulsar excessos, ele costuma fazer o mesmo com vazios incômodos.

Por isso que o equilíbrio de um bicho humano é sempre provisório, relativo. Não é possível dizer que um humano seja equilibrado, pois ele apenas está em um equilíbrio constantemente desafiado. Andamos pela vida sobre cordas, com a atitude de quem caminha em uma larga calçada.

Assim como o Manoel de Barros, escrevo porque meu copo de vida também transborda e esse é o meu modo imaginário de tentar salvar excessos.

Há quem projete os excessos para o copo cheio à sua frente e, por isso, beba o tempo inteiro, tentando evitar transbordamentos. Há quem tente beber, fumar ou cheirar o mundo para livrar-se de dores, não se importando com o risco de acabar sendo bebido, fumado ou cheirado.

Existem também aqueles que choram e deixam pingar fora os excessos que saem do copo, aliviando as dores do peito. Funciona como uma forma de desafogo, assim como a escrita. 

Há quem transborde escrita em melodia, como o grande Chico:

Tem dias que a gente se sente,
Como quem partiu ou morreu,
A gente estancou de repente,
Ou foi o mundo então que cresceu,
A gente quer ter voz ativa,
No nosso destino mandar,
Mas eis que chega a roda-viva,
E carrega o destino pra lá.

Roda mundo, roda-gigante,
Rodamoinho, roda pião,
O tempo rodou num instante,
Nas voltas do meu coração.

A gente vai contra a corrente,
Até não poder resistir,
Na volta do barco é que sente,
O quanto deixou de cumprir,
Faz tempo que a gente cultiva,
A mais linda Roseira que há,
Mas eis que chega a roda-viva,
E carrega a Roseira pra lá.

No momento em que escrevo este texto já é fim de tarde e, ainda com os pés sujos de barro por ter regado o jardim, ouço sozinho a Gymnopédie nº 1 do Erik Satie, composta na Paris de 1888, quando ele tinha apenas 22 anos. Enquanto ouço, penso sobre sua história de vida, as rejeições que sofreu por uma suposta falta de talento, o trabalho musical em cabarés onde também bebia o mundo, até a sua morte por cirrose hepática.

Como os pensamentos não costumam andar sozinhos, sucedem-se lentamente em minha tela mental, artes plásticas do Susano Correia, brasileiro com estilo bem definido que retrata com maestria e sensibilidade, estados emocionais do gênero humano. O Susano transborda através da pintura, do desenho e da escultura. Ele tem uma galeria virtual no endereço www.susanocorreia.com.br que merece ser visitada.

E no final de tudo, prosa, poesia, música e artes plásticas se encontram em um poliamor transbordante, porque são apenas diferentes formas de exprimir algo tão inútil quanto essencial para o bicho humano: a beleza.  

Darwinn Harnack

Darwinn Harnack é advogado e professor.

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