Religiosos adoram proibições. Na Tradição Judaico-Cristã, a história do homem na Terra começa com uma proibição. Deus teria dito a Adão e Eva que era proibido comer o fruto da frondosa árvore do conhecimento do bem e do mal.
Como sabemos, não adiantou.
Passados milênios, ainda se discute sobre a natureza do fruto proibido, mas as lembranças que ficaram gravadas no inconsciente do povo foram a da “proibição” e a da violação cometida pelo casal primordial.
Os Dez Mandamentos igualmente contêm uma relação de “nãos”, que de forma implícita também aparecem nos ameaçadores “sete pecados capitais”, que nada mais são do que impulsos que todos os seres humanos, com maior ou menor intensidade, experimentam durante a vida.
No Islamismo, também existem proibições quanto ao consumo de carnes de determinados animais, restrições sexuais, de bebidas alcoólicas, de jogos de azar e outras.
Apesar das proibições, assim como ocorre no mundo dos Cristãos, os Muçulmanos descumprem as normas e, a depender da região em que se encontrem, são duramente repreendidos.
O que precisamos ter em mente é que proibições e desejos moram em quartos vizinhos e se inter-relacionam. As proibições somente existem em razão dos desejos.
A proibição de certas liberdades individuais sob fundamento religioso é uma questão de foro íntimo, ou seja, cada um deve ser livre para acreditar no que deseja, ter a fé de sua preferência com as proibições que lhe são próprias ou até não ter fé alguma. Trata-se de uma garantia individual do Brasileiro. Não há discussão sobre isso.
Mas o que chama a atenção é o quanto essa questão cultural das proibições religiosas influencia o Estado e as normas jurídicas produzidas pelo Estado.
Os critérios fundantes de determinadas proibições e liberações possuem pouco lastro em dados objetivos. Proíbe-se ou libera-se o que, num dado momento histórico, “acha-se” que deve ser proibido à luz de textos religiosos ou de supostos valores conservadores.
Exemplo disso, é a liberação indiscriminada do consumo de álcool. Talvez seja socialmente admitido (e até bem visto) por ser previsto na tradição Judaico-Cristã. O álcool integra, inclusive, o rito da Comunhão e o evangelho de João atesta que Jesus teria praticado o seu primeiro milagre ao transformar água em vinho nas bodas de Caná.
Não sou um crítico da liberação do consumo de álcool. Pelo contrário, apenas vejo falta de coerência em proibições congêneres.
Da mesma forma, fazendo apelo a um “Deus acima de todos”, libera-se progressivamente a distribuição de armas de fogo e de munições para a população, diminuindo-se cuidados e cautelas antes vigentes. “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada”, bradam religiosos que defendem a ampliação de acesso a armas de fogo e munições, fazendo alusão a uma fala descontextualizada de Jesus constante no evangelho de Mateus.
Ao mesmo tempo, proíbe-se o porte e a comercialização de uma gama enorme de substâncias psicoativas, muitas delas talvez menos danosas socialmente do que o álcool e a posse de armas de fogo.
Outro exemplo, é a controversa questão envolvendo a criminalização do aborto. No Brasil, o aborto é crime, salvo quando o feto for anencéfalo, a gravidez resultar em risco de vida para a mãe ou ainda, se for resultante de estupro.
De um lado do cabo de guerra, defensores religiosos e conservadores dos costumes tentam restringir ainda mais as possibilidades do aborto. De outro lado, figuram mulheres que desejam ter liberdade sobre o próprio corpo e o destino de suas vidas.
Em verdade ninguém “apóia” o aborto. Esta é uma forma comum de deturpar a discussão. O aborto é medida difícil, em primeiro lugar, para a própria gestante. No entanto, o radicalismo de valores religiosos parece não permitir uma abordagem centrada a respeito da sua adequação em uma série de outras situações além das previstas em Lei.
Não se está aqui pregando que as liberdades devam ser absolutas. Neste século XXI chegamos a um ponto de desenvolvimento civilizacional, que já é possível compreender a necessidade de que as liberdades devem ser socialmente qualificadas, ou seja, devem encontrar limite na liberdade dos outros. A liberdade será sempre um vínculo de reciprocidade social.
O que proponho como objeto a ser pensado é a questão da falta de critérios coerentes, científicos e objetivos para a fixação de uma série de proibições e limitações a liberdades individuais.
Particularmente, entendo que a questão da interrupção da gravidez não deveria ser matéria criminal, mas, de educação e de saúde pública. Menos adolescentes e mulheres adultas seriam mortas ou ficariam mutiladas, se o problema não fosse empurrado para debaixo do tapete da hipocrisia.
Não há solução simples. Se é crime, então procura-se clínicas clandestinas ou métodos domésticos e inseguros. Os abortos não pararam de ser realizados por ter sido criminalizada a conduta, eles apenas seguem caminhos ocultos. Para quem pode pagar, a prática é realizada de forma segura fora do Brasil.
Para quem não pode pagar, o cenário é bem mais complexo. Somente em 2020, o SUS fez aproximadamente 81.000 procedimentos de curetagens e aspirações em decorrência da realização de abortos malsucedidos ou espontâneos. Segundo a OMS, na América Latina, cerca de 30 mulheres morrem a cada 100.000 habitantes, em razão de abortamento inseguro.
Da mesma forma, a política de criminalização de drogas no Brasil, baseada no encarceramento em massa de jovens em sua maioria pobres e pretos, não é nada inteligente. Ela gera um custo altíssimo ao Estado e, por todo o histórico de décadas de experiência frustrada, não surte resultado. Estamos pagando caro com dinheiro e vidas, para continuar a enxugar gelo.
Em apenas uma operação policial realizada nesta semana na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, morreram 25 pessoas e outras várias ficaram feridas.
Então surge a pergunta: o problema do tráfico foi resolvido na comunidade? A resposta é negativa. Tudo continuará normalmente. São mortes de pessoas pobres, 24 residentes na favela e 1 policial. Pobres que matam pobres para sustentar uma política burra em relação à matéria.
Uma solução mais robusta para o problema, virá somente através de campanhas de educação, conscientização e redução de danos (hoje inexistentes, vale dizer). Também será necessário adotar políticas que frustrem o lucro com a venda dessas substâncias, o que em pequena parte, já tem sido feito.
Penso que avançaremos nessas pautas, mas lamento que anos e vidas estejam sendo desperdiçadas, enquanto aguardamos o amadurecimento de parcela da população e de seus representantes eleitos, para que as providências necessárias a esse tipo de transformação sejam adotadas e postas em prática.
*A obra de arte que emoldura o texto é do Alemão Lucas Cranach – 1538.
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