Opinião

Slater, o grande vilão. 

Slater, o grande vilão. 

Kelly Slater é o grande herói do surfe. Assim considerado com toda a justiça. O mais jovem e o mais velho campeão do mundo. O maior campeão: inalcançáveis onze títulos mundiais. Dono de todos recordes. Senhor dos mais invejáveis feitos. Ídolo dos ídolos dos surfistas. Agora, às vésperas de completar cinquenta anos, realiza mais uma proeza histórica: foi o indiscutível campeão da etapa de Pipeline, o grande evento da temporada na mais célebre onda do mundo. Slater é o maior surfista da história. Talvez seja o maior atleta. 

Mas é também uma figura ambígua. Por trás da imagem impecável do atleta na face azul das ondas, há as profundezas escuras do empresário e do homem, Robert K. Slater. Um empresário cujos negócios se confundem com as da empresa que controla o surfe mundial. Um homem de opiniões e ações bem distintas das que nós, surfistas, admiramos. 

O surfe mundial é hoje controlado por uma empresa. O homem por trás dessa empresa é Dirk Ziff, um bilionário americano que caiu de paraquedas sobre os escombros da ASP, até então a “FIFA” do surfe. Devastada pela falência de seus grandes patrocinadores, a ASP entregou seu grande ativo – o direito de organizar os campeonatos mundiais de surfe, nas diversas categorias – a Ziff. Esse negócio, altamente suspeito e jamais esclarecido ao público, foi intermediado por Terry Hardy: sim, ele mesmo, o empresário (e provável testa-de-ferro) de Slater. 

Como diria Renato Russo, “nada fácil de entender”. O esporte que amamos nas mãos de uma empresa misteriosa. Dela sabemos apenas o seguinte: Ziff é o bilionário que diz ser seu controlador; e Slater, o homem que lhe entregou o controle do surfe mundial. Não sabemos como Ziff a comanda, nem se de fato a comanda. Sabemos ainda menos como Slater conseguiu essa grande proeza, maior que qualquer outra que ele tenha realizado sobre as ondas: entregar esse tesouro nas mãos de Ziff. Tudo o que sabemos é o seguinte: essa empresa tem o poder de definir o futuro do surfe de competição – e Robert K. Slater, em pessoa, tem um papel decisivo nessa definição. 

Confesso que isso me enoja. Aliás, acho que isso enoja a todos nós, surfistas. Não duvido que esse nojo explique, em alguma medida, a recente decisão de Gabriel Medina. Sim, isso nos enoja: saber que esse poder imenso, tão decisivo no destino do esporte que amamos, foi entregue a um pequeno grupo de pessoas agindo como vultos por trás da cortina. E sobretudo: saber que entre esse pequeno grupo está o maior ídolo do surfe. Slater é o mais surfista de todos os tempos, mas não pode ser maior que o próprio surfe. 

E o quão grande Slater deseja ser?

Como diria Guilherme Shakespeare, “eis a questão”. É impossível responder. Mas há sinais de que esse desejo é grande demais. Por exemplo, o recente episódio em que ele demonstrou ser um “antivax”. Não vou e nem posso discutir os efeitos da vacina sobre nosso corpo. Entendo que um homem como Slater, dono de uma saúde invejável (e também de uma fortuna, pra qualquer eventualidade), possa não querer tomar o remédio. Eu também não quis: também tenho ótima saúde e nunca temi ser vencido pelo vírus. E também temo “efeitos colaterais” da vacina. Mas eu tomei. Eu quis que minha família e meus amigos soubessem que tomei. Eu quis agir de modo que minha ação fosse um exemplo. Porque essa ação, a de tomar a vacina, é fundamental pra muitos dos meus familiares e amigos. E é fundamental, sem dúvida possível, pro destino da humanidade. Não importa a incerteza quanto a possíveis danos que eu possa sofrer. Importa a certeza de que a vacina foi (e é e será) indispensável a salvar milhões de vidas. Entre a incerteza de um dano a mim e a certeza de um benefício a todos, optei pela segunda. Muitos fizemos essa opção. Slater não: ele escolheu a si mesmo. 

Uma escolha desse tipo não é algo isolado em sua biografia. Em 2016, às vésperas da eleição de Donald Trump, perguntaram se ele não temia o candidato (que quatro anos depois incentivaria suas hostes a invadir o parlamento): “isso não me assusta”, ele respondeu, “não importa quem tenha sido o Presidente, isso nunca mudou minha vida”. Um presidente muda a vida do povo. Uma vacina salva-lhe a vida. Mas Slater não se importa: a própria vida é sua maior preocupação. 

Se é assim, posso supor que Slater julgue-se maior que o próprio surfe. E que seu poder sobre o esporte seja exercido pra consagrar sempre mais sua majestade. E que na face azul das ondas, que ele surfou sempre tão brilhantemente, ele não veja mais do que a própria face. Se é assim, se o egoísmo de Slater é tão doentio, então ele já não será mais o grande herói do surfe. Será, na verdade, o grande vilão. 

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