Nem bem Jotabê acostumara-se com o colchão do Alvorada, explodiu o primeiro escândalo: rachadinha, funcionários fantasmas, gente ligada à milícia no gabinete do Flavinho. Mas o escândalo não atingiu o Presidente. Fabrício Queiroz foi preso, Ronnie Lessa foi preso, Adriano da Nóbrega foi morto, a morte de Marielle rondou o Vivendas da Barra. Mas o escândalo não atingiu o Presidente. Pazuello caiu, Araújo caiu, Salles caiu, mais de quinhentas mil pessoas morreram enquanto eles caíam (ou eram “caídos”). Mas nem os escândalos e nem as mortes atingiram o Presidente. “Jotabê parece ter uma capa protetora”, me disse um amigo. “Pra atingi-lo, só uma bala de prata”.
A grande pergunta do momento aproveita essa metáfora: a sucessão de escândalos na compra de vacinas – a rejeição da pfeizer, a covaxin superfaturada, o “dólar por dose” – é a bala de prata no peito de Jotabê? Há três razões a sugerir que sim. Vejamos se procedem.
Os escândalos explodem no colo de Eduardo Pazuello e Ricardo Barros, cujas ligações com o Presidente são óbvias. Pazuello já disse: “ele manda, eu obedeço”. Barros, além de líder do Governo na Câmara, recebeu um punhado de cargos na cúpula do Ministério da Saúde, sem contar outros presentes, por exemplo, no BNDES. Jotabê tem razão quando diz que não pode saber o que acontece nos Ministérios. Mas estamos falando da compra de vacinas para o enfrentamento do mais grave problema sanitário de nossa história. O Presidente não pode dizer que não se inteirou desse assunto. Afinal, justamente quando se discutia a compra de uma outra vacina (a um preço bem melhor e produzida no Brasil), ele declarou: “Já mandei cancelar, o Presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”.
Esses escândalos não apenas atingem Jotabê: eles assumem uma gravidade especial diante dum contexto em que o Presidente teve papel decisivo. Não se trata apenas de corrupção. Não são apenas milhões, ou talvez bilhões, que se quis desviar. Trata-se de crimes praticados no momento em que contávamos centenas de milhares de mortos. Crimes que, se confirmados, terão causado outras tantas e tantas mortes. Diante das circunstâncias trágicas, a gravidade é máxima. Jotabê, que liderou a reação do Estado brasileiro à pandemia, será também o protagonista dessa tragédia.
Mas as circunstâncias não se restringem a ressaltar a gravidade do possível crime. Elas também podem sugerir a inconveniência política de Jotabê. No dia em que Luís Miranda citou, num desabafo, o nome de Ricardo Barros, uma pesquisa eleitoral indicava que Lula galopa nos cenários projetados para 2022. Jotabê, o rival do petista, não permite a ascensão de uma outra candidatura que tenha chances de batê-lo. Mais do que qualquer outra pessoa, Lula quer a candidatura de Jotabê: como já escrevi neste espaço, o atual Presidente seria seu oponente ideal. Os setores mais à direita – e mais ao alto – da sociedade brasileira dão claros sinais de que compreenderam essa peculiar dinâmica eleitoral. A “bala de prata” é feita não só de escândalos, mas também de projeções.
Então Jotabê está liquidado? Não é possível afirmar. Para isso seria necessário o impeachment. O Congresso talvez não esteja disposto a buscá-lo. Como disse aquele mesmo amigo meu, “vai sobrar dinheiro no orçamento da União”. Muito dinheiro. Muitos parlamentares beneficiados. Numa palavra: muita barganha nas mãos do Presidente. O “centrão” – ao menos até aqui – está com Jotabê: ao receber o tal “superpedido de impeachment”, Arthur Lira deu um riso sutil e debochado. A CPI talvez siga fazendo estragos. Mas esses estragos talvez sejam só isso: “balas de festim”.
Em todo caso, pela primeira vez a dúvida paira sobre a República. O governo balança, a oposição articula com força a candidatura de seu velho líder e, detalhe importante, o povo está nas ruas. No sábado estará novamente. Talvez seja essa a variável decisiva. Talvez venha das ruas a definição dessa dúvida. A “prata”, na metáfora que usamos aqui, é o povo. O tiro fatal, quem o desfere somos nós.
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