Opinião

A empresa e o dragão

A empresa e o dragão

A advocacia é interessante. Como numa pintura de Dali, abre janelas no tempo. É isto o que fazemos, os advogados: o resgate do passado para projetar efeitos no futuro, que perseguimos até que se tornem presentes. Por exemplo: estou trabalhando num caso e, de repente, me vejo imerso em 1993. Imerso: não bastam as circunstâncias do caso; tive que resgatar as circunstâncias do país. As ruínas da “era Collor”. O “governo Itamar”. A hiperinflação. Lembrei até de mim, menino de calças curtas e dribles longos como os do João; mas só por um instante: a história que eu resgatava nada tinha de infantil.

Em 1993 havia uma empresa que, como todas as empresas, dava resultados variáveis. Ora um lucro maior, ora um menor, ora um prejuízo. Minha missão é resgatar esses resultados. Ou melhor: analisar a perícia que os apontou. Detalhe incidental: quanto mais positivos esses resultados, maior será o ganho de meu cliente. Pois bem. A perícia revelou um dado curiosíssimo, pra não dizer estranho: ao fim do ano, aproximadamente um terço da receita da empresa vinha de “juros sobre aplicações financeiras”. O advogado da parte adversa, muito hábil, alegou que esses juros não podiam ser contabilizados como receita: não eram produto da atividade da empresa, mas apenas os rendimentos de suas aplicações bancárias. Eu encostei na cadeira, cocei a barba e pensei comigo: “um terço da receita, só de juros? Tem algo errado aí.”

Tinha mesmo. Algo erradíssimo. Numa palavra: hiperinflação. O dragão que corroía a moeda brasileira em 1993 era rigorosamente monstruoso: segundo o índice oficial, a inflação do ano bateu 2.500% (transcrevo por extenso, pra que não reste dúvida: dois mil e quinhentos por cento). Esse dragão abocanhava quaisquer recursos que estivessem parados: o trocado no bolso da calça, a renda das famílias, o caixa das empresas. Os empresários não podiam ter sobra de caixa. Ou melhor: não podiam mantê-las “paradas”. Ou gastavam imediatamente essas sobras, geralmente com estoques. Ou aplicavam. Como registra uma reportagem da Folha, “[o empresário] ligava diariamente pro gerente do banco pedindo pra aplicar tudo o que sobrava na conta no antigo overnight”. Estava explicado aquele ‘estranho dado’ que a perícia revelou: o alto valor dos juros refletia a tentativa de preservar o fluxo de caixa dos ataques do dragão.

O dragão, um ano depois, seria domado. Em 1994 o Plano Real soube conter a inflação brasileira. Desde então, ressalvados alguns pequenos “picos”, ela parece controlada. Mas o dragão não morre. Aprisionado, ele ameaça livrar-se de suas “férreas cadeias”. Dos calabouços em que o prendemos, ouvem-se seus rugidos.   

Cada vez mais altos. A ameaça da volta da inflação não é novidade: Paulo Guedes já advertiu pra esse risco. Parece haver grandes distorções na formação de preços nos diversos níveis da cadeia produtiva. O câmbio alto pressiona. Os preços dos insumos mais básicos, especialmente pra indústria, estão nas alturas. Pior de tudo: os índices ainda “baixos” da inflação devem-se sobretudo à demanda reprimida – consequência do desemprego, da queda no valor real dos salários e do assustador processo de empobrecimento das famílias (exceto algumas poucas, muito poucas, cada vez mais ricas). Todos (exceto alguns poucos, muito poucos, cada vez mais ricos) desejamos que haja melhoras nestes números, que o poder de consumo das famílias aumente e que o povo tenha mais dinheiro: mas, nesse caso, a pressão inflacionária pode ser intensa. O dragão pode se tornar monstruoso – de novo. E de novo nos assombrar.

Eu sei, eu sei: os monetaristas dirão que, havendo inflação alta, basta “aumentar a Selic”. Pronto: o remédio amargo cura – e eles, os monetaristas (e seus clientes), ganham. Pode ser. Quem sou eu pra fazer previsões sobre a inflação? Eu sei, eu sei: os monetaristas têm a esse respeito argumentos (e planilhas) muito melhores.

Mas o resgate de 1993, a imersão naquele tempo de hiperinflação, o caso daquele empresário – idêntico ao de tantos outros de então – que “ligava diariamente pro gerente do banco”, tudo isso me despertou uma visão mais ampla. O ano em que eu tinha calças curtas e dribles longos (reconheço: não como os do João) era o fim de um ciclo que teve início antes de meu nascimento, que atravessou os anos oitenta e que nos deixou um legado soturno. O resgate do passado tem esse efeito: permite uma visão mais vasta da história e mais íntima do presente. Uma percepção aguda de que os ciclos se repetem. Uma sensação de que já vimos, com protagonistas tão semelhantes, esse filme. São janelas no tempo, como numa pintura de Dali (ou de Bosch).

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

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