Opinião

Uma perspectiva extraordinária

Uma perspectiva extraordinária

Passei por acaso em frente à TV no momento em que rodava a cena. A moça, o rapaz, passos de valsa na porta giratória. A luz perfeita, o traço finíssimo e exato, o ritmo implacável. O tipo de beleza só visto na arte oriental. Olhei no canto da tela: “uma advogada extraordinária”. Pensei comigo: tenho que ver essa obra.

A obra é uma série dum famoso serviço de streaming. Li a sinopse: falava sobre “uma jovem autista e brilhante”, “um grande escritório de advocacia”, “dificuldade com interações cotidianas”. Pensei comigo: deve ser um clichê adocicado. Quase desisti. Mas aquela cena me atiçava uma curiosidade bem pontual. Peguei o controle, uma taça de conhaque e, confesso de uma vez, dei o play no episódio 1.  

O brilhantismo da jovem logo se apresenta numa cena implausível. Ela tem cinco anos e jamais falou uma palavra. O pai se envolve numa briga. A filha se exalta e, pra espanto de todos, recita artigos do código penal. Logo fica claro que ela sabe o texto do código de cor. Mas não é nisso que está a implausibilidade da cena. Desde Rain Man sabemos que isso é possível. Mas sabemos também das limitações que esse dom parece trazer: o personagem de Dustin Hoffman memorizava todas as cartas, mas era incapaz de ganhar o jogo – era um gênio, mas também uma espécie de autômato. Eu não duvidava de que a pequena gênia pudesse decorar centenas de artigos de lei. Minha desconfiança era outra: como ela sabia qual deles se aplicava à situação vivenciada?

Essa dúvida sintetizava aquela minha ‘curiosidade’. A “jovem autista e brilhante” tem uma relação peculiar com a linguagem. Como essa relação se reflete na sua percepção (ou representação) da lei? Como ela cruza o abismo entre a lei e a realidade? Que ponte ela atravessa? Uma outra cena, também no início do episódio, ilustrava essa questão. Ela está se vestindo antes do primeiro dia de trabalho. Percebe que alguém deixou um presente – uma roupa. Olha pra um quadro em que há dezenas de fotos que representam emoções; sob cada foto, a legenda indica a emoção representada. Ela então escolhe uma, “felicidade”, e imita o sorriso fotografado.

Não fica claro, com essa cena, se ela é incapaz de expressar ou de reconhecer emoções. Talvez ambas as coisas. Se bem que essa possível incapacidade seja relativa: é claro que ela expressa e reconhece e sobretudo tem emoções; mas tudo isso de um modo que talvez não consideremos “normal”. Em todo caso há ali, naquele quadro de emoções legendadas, um código. Um instrumento de interação linguística com a realidade. E o que é a lei senão um tal instrumento?

Eis o ponto: a genialidade da moça dirige-se à lei. Não basta decorar todo o vasto e impermanente conjunto de normas. É preciso compreendê-lo em sua relação com a realidade. Considerar sua função instrumental. Enfrentar toda a complexidade desse conhecimento. A inteligência que conhece a lei não pode ser a de um autômato: conhecê-la é muito mais que memorizá-la.

Há um detalhe a mais: a moça estuda a lei penal. Então tudo fica ainda mais complexo. Quando se trata de crimes, considera-se a conduta humana a partir de certas premissas profundas. O fato criminoso não é só a causa de danos ou riscos: é a ação (ou a omissão) dirigida a produzi-los, ou indiferente a eles, ou descuidada a ponto de causá-los. Quase sempre está em questão a finalidade da conduta. Se dou com um ferro na cabeça de alguém, meu possível crime será definido de acordo com minha intenção: se eu queria matá-lo, será homicídio, ainda que ele não morra; se eu queria machucá-lo, será lesão, ainda que morra. Toda conduta humana é movida por um fim. Toda ação (ou omissão) é um projeto.

Tais premissas talvez não sejam assim tão claras pra moça. Não porque ela vislumbre algo além disso – alguma premissa ainda mais profunda. Mas simplesmente porque ela vê a linguagem desde outra perspectiva; e porque vê tudo aquilo como uma questão meramente linguística. Fim, projeto, ação – são só palavras. Recortes da realidade infinitamente complexa. Legendas para representações – parciais, pré-concebidas, provavelmente simplórias – da conduta humana. Ela reconhece tudo isso como peças de um jogo. Então, aprendendo as regras, pode vencê-lo.

Seu grande feito não foi formular a tese vencedora. Todos sabíamos que haveria um caso e que ela acharia alguma solução genial. Esse era o clichê. Aqui entre nós: clichezinho barato. As “soluções geniais” do episódio 1 – considerar as repercussões civis do crime e questionar o nexo de causalidade – foram bem prosaicas: qualquer advogado cuidadoso pensaria nisso. Além disso, há algo de errado no raciocínio do roteirista: a premissa sobre a falta do nexo causal não conduz – em tese – à conclusão afinal alcançada. Mas deixo isso de lado, pois não quero dar spoiler – e sobretudo porque não é isso o que importa. A moça, seu dom e sua diferença, sua outra perspectiva – isso é o que importa. Seu grande feito foi simplesmente falar ao júri. Transpor o abismo entre ela e os julgadores. Atravessar a ponte da linguagem. O “normal” é fazermos isso naturalmente: nosso discurso é extensão do nosso ser. No caso da moça, esse processo teve que ser criado. Sua genialidade está justamente em realizar tais processos: diante da porta giratória, passos de valsa.

Não vi mais episódios da série. Provavelmente não verei. Sei que os clichês vão me irritar. Sei que os personagens se tornarão cada vez mais caricatos diante da pureza “anormal” da protagonista. Sei que a beleza oriental de algumas cenas se diluirá na insistência ocidental em amarrar espectadores com velhas artimanhas de enredo. Sim, talvez seja melhor manter comigo – intacta – essa personagem. Adivinhar, como num jogo, os pensamentos de alguém com uma perspectiva extraordinária da lei, da linguagem, do mundo. Manter a porta sempre girando – e atravessá-la.

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

Comentários:

Ao enviar esse comentário você concorda com nossa Política de Privacidade.