A gata de Baudelaire: breve tentativa de abordar a questão dos direitos dos animais
Publicado por Victor Emendörfer Neto
em
// Direito
Há poucas semanas tentei explicar por que escrevo sobre Direito Empresarial. A resposta basicamente era a seguinte: empresas são importantes; e é o Direito que lhes dá personalidade, corpo, capacidade de agir. “É a lei, afinal, que dá existência às empresas”, escrevi ali. “Ela reconhece os fatos típicos – o contrato, a atividade, os dirigentes – cuja reunião permite apontar a existência desse ente. Mas reitere-se: esse ente é fictício. Ou melhor: não é humano. No Direito, tudo o que não é humano tem um quê de fictício. No Direito, só há uma realidade indiscutível: a consciência e a vontade – numa palavra: a liberdade.” Se as empresas são personagens decisivos da sociedade atual, o Direito Empresarial é a chave para desvendá-las.
Publicado o artigo, uma leitora me escreveu uma mensagem. Resumidamente, dizia: o Direito é capaz de dar personalidade a uma ficção; mas é incapaz de reconhecer direitos aos animais – cuja existência é tão real quanto a nossa, a dos seres humanos. A mensagem me abalou. Não porque eu jamais tivesse enfrentado a questão que propõe; mas porque compreendi que, passado tanto tempo, ainda não fui capaz de achar uma resposta. Como a gata de Baudelaire, a questão ficou por anos indo e vindo em minha mente, morando ali – e de repente ela “erra pelo telhado, com a lúgubre voz de um fantasma brumoso”.
Há uma explicação lógica para o fato de que empresas tenham personalidade jurídica. Em duas palavras: separação patrimonial. Uma pessoa jurídica é a responsável – em princípio, a única – por suas dívidas. Sua existência – ainda que puramente jurídica – protege os patrimônios de quem a constituiu. Assim os investidores se sentem mais seguros para aportar capitais no negócio. A personificação das empresas explica, em parte, a revolução industrial e todos os seus desdobramentos. É um produto e um instrumento da economia burguesa.
Um Direito instrumental, forjado sob o influxo da ordem social capitalista, era seletivo quanto àqueles – ou àquilo – que considerava pessoa. Somente tinha personalidade quem podia ter direitos sobre bens. Tudo se resolvia no binômio sujeito e objeto. Pura metafísica ocidental, diria Nietzsche. Escravos, por exemplo, eram bens: objetos. Empresas eram sujeitos: pessoas. Uma ontologia bastante distorcida, você dirá. Com toda razão.
Os tempos passaram, as guerras passaram, passou o horror. Os homens, diante da visão do horror, concluíram que não bastava um Direito meramente instrumental. O conceito de homem – e o consequente princípio da dignidade da pessoa humana – tornou-se a premissa fundamental dos sistemas jurídicos do pós-guerra. Mas ainda não estava superado o modelo forjado na era das revoluções e cristalizado pelos pandectistas alemães. Ainda se baseava, o Direito, no binômio sujeito-objeto. Tudo ainda era apenas mera metafísica ocidental, diria Heidegger. “Consciência, vontade, liberdade: sim, eu sei, há muita discussão também quanto a esses atributos humanos”, escrevi naquele mesmo artigo. “Mais ainda: discute-se se esses atributos são a base do Direito. Há quem acuse, aos que assim pensam, de acreditar num Direito idealista; logo, irrealista; no fundo, metafísico, hegeliano, burguês.” Um Direito que típica manifestação do que Habermas chamou de razão autorreferencial, em que o sujeito é criado à imagem e à semelhança do homem – ocidental, moderno, weberiano – e tudo em volta do homem, o mundo em si, é objeto.
O mundo, entretanto, não se ateve a uma posição tão submissa. Também ele um organismo, o mundo reagiu. Os polos começaram a derreter. A atmosfera, a se esburacar. O clima, a enlouquecer. Os homens sentiram na pele, literalmente, seus delírios antropocêntricos. Surgiu, como premissa básica do Direito, o conceito de meio ambiente. Uma premissa tão básica quanto a própria existência do homem. Afinal, esta supõe aquela. Sem meio ambiente não há existência alguma. O Ser, a categoria ontológica fundamental, nada tem de absoluto: é um dado circunstancial – e possivelmente acidental – da curta história de um planetinha azul girando em volta de uma estrela coadjuvante no grande espetáculo do universo.
E então ali, na dimensão insubmissa do mundo que passamos a chamar de meio ambiente, de repente vislumbramos os animais – agora sob outra luz. Na verdade, sob várias outras luzes. Eles, os animais, sempre estiveram conosco. Mas sempre numa condição – de novo esta palavra – instrumental. Eram a caça se come, a cria que se abate, a utilidade que se adestra: eram objetos. De repente os animais entraram em casa, sentaram-se no sofá e responderam aos nossos desabafos mais solipsistas. Baudelaire, em outro poema, disse a respeito da mesma gata – nada metafórica, rigorosamente felina:
Pra dizer as mais longas frases
Ela não tem necessidade de palavras.
Talvez me faltem palavras pra responder à questão proposta pela leitora. Decerto me falta espaço – ao menos neste artigo, que convém não ser demasiado longo, diria Seu Teco. A questão segue nos confrontando com aquela incômoda verdade: empresas, entes fictícios, têm direitos; animais, entes reais, não. Na próxima semana, se Dom Teco permitir, deverei retomá-la.
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