Opinião

A injustiça da pandemia

A injustiça da pandemia
Cena do filme The Last Man On Earth (1964)

Há um ano um morador de Criciúma moveu uma ação judicial atacando o decreto municipal que impunha o uso de máscara. Ele invocava “o direito de andar livremente” e alegava a ilegalidade e a inconstitucionalidade daquele decreto. A ação foi rejeitada. O julgamento, mais do que uma resposta àquela demanda, foi uma lição. 

“Fosse o impetrante o último e único indivíduo morador de Criciúma (ou afinal o último habitante do planeta, uma vez que se cuida de pandemia e como o próprio nome sugere trata-se de uma epidemia global) não haveria o menor problema para que o mesmo circulasse livremente sem máscara e ficasse exposto ao vírus Covid-19 (ou a qualquer outra moléstia letal transmissível) por sua livre e espontânea vontade, uma vez que não transmitiria seus males para quem quer que seja.”

Esse é o primeiro parágrafo da fundamentação da sentença. É de uma sobriedade impactante. A lição trazida expunha os fundamentos evidentes de uma ética a que o negacionismo parece ser surdo. “Deve o impetrante usar a máscara”, escreveu o juiz, “não apenas pela ética individual (protegendo a si) mas fundamentalmente pela ética coletiva (proteção de si mesmo, da sua família, dos seus vizinhos, amigos e todos os que porventura convivam ou cruzem com o impetrante e possam ficar expostos às suas mucosas e fluidos corporais)”.

Não por acaso, esse julgamento se tornou célebre. A lição que ele traz se alastrou como a luz na escuridão. O autor dessa lição, tão simples e tão necessária, é o juiz Pedro Aujor Furtado Junior. 

Conheci Pedro há muitos anos, quando cursava a faculdade de direito. Eu era um estagiário no Tribunal de Justiça catarinense; ele, um prestigiadíssimo assessor jurídico disputado pelos mais renomados desembargadores. Logo vimos que tínhamos assuntos de interesse comum. Ele era um sujeito de vastíssima cultura. Quando se tratava de música, era uma enciclopédia. Tomamos alguns cafés discutindo sobre o primeiro disco do Hendrix ou sobre o último da Bjork ou sobre aquela música do lado b dum obscuro disco do King Crimson que ninguém conhecia. Ninguém, exceto ele. Pedro era dono de uma inteligência inquieta, de alta rotação, sempre capaz de insights e memórias remotas e observações agudas e engraçadíssimas. 

Meu estágio na Corte catarinense não durou muito. Saí dali rumo a outras plagas. Passei anos sem encontrá-lo. Um dia eu o vi num show do Vítor Ramil num pequeno templo às margens da Lagoa da Conceição. Mas mal conversamos: era o Vítor Ramil em voz e violão, era preciso fazer silêncio. 

Pedro tornou-se juiz e muitos anos depois chegou à comarca jaraguaense. Um dia estive em seu gabinete pra cumprimentá-lo. “Dá licença, doutor”, eu falei à porta. “Entre, sente-se e esqueça esse ‘doutor’”, ele respondeu rindo. Não conversamos muito. Ele trabalhava obsessivamente. Tomamos um café e eu o deixei com seus processos. Foi a última vez em que o vi. 

Pedro Aujor Furtado Junior faleceu há poucos dias, aos cinquenta anos, por complicações ligadas à covid19. Sua morte foi amplamente noticiada. O juiz que havia dado a lição de ética coletiva tornara-se, por uma “triste coincidência”, mais uma vítima da pandemia. Na verdade, mais do que a tristeza diante da perda, temos um sentimento de indignação. Não é justo, pensamos, que a doença faça vítimas entre aqueles que a enfrentam com mais lucidez e mais nobreza de caráter. Não é justo que o vírus preserve os negacionistas, babando de ódio e egoísmo, e vitime justamente os que lutaram a boa luta. A pandemia é trágica também porque é naturalmente injusta. O que nos entristece, e sobretudo nos indigna, é essa injustiça natural. 

A indignação, porém, cede a uma constatação reconfortante. Pedro deixou um legado. Sua postura, sua lucidez, sua célebre sentença foram importantes – inclusive na luta contra a pandemia. É razoável supor que muitas vidas tenham sido preservadas em razão desse legado. Pedro infelizmente não pôde preservar a própria vida. Mas sua luta não foi em vão.

À sua família e a seus amigos mais próximos, deixo meu sincero pesar. E espero que a menção a esse legado possa aplacar, um pouco que seja, a imensa dor que agora sofrem.

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

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