Vênus e Marte em Leão, a Lua em Peixes e aquela mensagem no whats ainda sem resposta: eis o meu céu no momento em que escrevo. Os astros convidam ao encontro, sugerem prazer, atiçam os hormônios. A mensagem põe, no fim dessa leitura astral, um ponto de interrogação.
Em meu último texto escrevi sobre os cancerianos. Então evoquei Hércules, que retratei como a personificação da razão “divina e humana”: “embora capaz dos mais altos feitos, ela é um mero instrumento dos caprichos de um senhor”. Ao narrar a cena em que o herói mata a Hidra, ressaltei o antagonismo de Câncer, o caranguejo. “A Hidra é símbolo do desejo: o falo invencível, o vigor inesgotável, o monstro que debocha dos golpes cortantes da razão. Hércules, entretanto, consegue matá-la. Mas só depois de superar o ataque do animal que Hera, a rainha, enviou: Câncer, o caranguejo.”
Vem de um canceriano a mensagem que recebi – e que me põe na mente o tal ponto de interrogação. Vem dele, o homem de quem já lhes falei, o autor das mensagens que nos últimos tempos me abalam tanto quanto os astros. A última, ainda sem resposta, perguntava: “quem separou a emoção da razão?”
Era uma pergunta sobressaltada. No céu desse homem, na mensagem que ele escreveu, havia ira. Trovejando e relampeando, ele bradou em nome de todos os cancerianos: “por que carregamos a pecha da emocionalidade frágil?” E concluiu propondo uma questão-síntese digna dum Heráclito: “por que não viver a experiência de uma razão integral, no fundo do manguezal existencial?”
“Manguezal existencial”? Quão equivocado está meu bom homem! Ele leu fragilidade onde eu escrevi heroísmo. Viu a lama do mangue onde descrevi o fogo da coragem. E temeu a escuridão bem onde eu saudei a luz. “Há uma luz puríssima”, escrevi, “guardada no céu canceriano. Um tesouro incandescente, agora ainda mais irreprimível ante a presença de Vênus. O fogo da coragem, heroica e feérica, de enfrentar a razão.”
A “razão” não era, em meu último texto, a potência dos fortes, dos sóbrios, dos hercúleos. Era o “mero instrumento dos caprichos de um senhor”: Hércules era um escravo que cumpria os trabalhos impostos por um poder irrazoável. Câncer fisga o pé descalço desse escravo. O golpe não denota um ataque mortífero: o caranguejo parece querer despertar Hércules, fazê-lo acordar do transe de realizar sem trabalhos sem propósito, libertá-lo do jugo da escravidão.
Câncer morre sob o pé de Hércules. A cena é provocante, obscena, sádica: o heroísmo do animal é esmagado pela altivez (poderíamos dizer “ereção”: afinal, foi um golpe típico de quem ostenta a postura ereta) do homem racional. Mas Hera intervêm. O caranguejo é alçado ao céu do mundo guardando eternamente o sol do solstício. Hércules, não suportando o veneno de Nesso, atirou-se à fogueira.
Meu bom homem não disse, mas talvez saiba: “quem separou a razão da emoção” foi a potência escravagista que fez daquela um instrumento de seu poder. Sim, é verdade, eu concordo: há uma “razão integral”, anterior e eterna, livre desse jugo. Uma que Heráclito visualizou em seus versos mais densos, atravessada pela luz mais pura – a luz do solstício, a luz de Câncer. Mas isso não contraria o que escrevi; ao contrário: confirma. Meu bom homem talvez não saiba, mas meu último texto era um elogio e um convite à canceriana emoção.
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