Decreto do Governo do Estado autorizou o retorno das aulas presenciais. A medida é polêmica. A volta às escolas é tida por muitos – e por várias razões – como inadiável. Entretanto, a pandemia está num momento delicadíssimo, especialmente em Santa Catarina. Neste contexto, a Abertura propõe esta questão crítica: é hora de voltar?
Em grande parte das escolas de Santa Catarina, a última semana foi marcada pelo retorno das aulas. Em grande parte das famílias que habitam o Estado, esse retorno representa um dilema. A volta às aulas é um desejo (e uma necessidade) geral. Mas é também um risco.
Quão grave é esse risco? Vale a pena enfrentá-lo? A que custo?
Essas são perguntas cruciais. Tentaremos buscar as respostas. Ou melhor: tentaremos expor boas razões para ajudar a respondê-las. Afinal, essas respostas cabem a cada família, a cada pai e mãe. E nunca são perfeitas: sempre podem surgir novas razões mais convincentes; e sempre surgirão novas circunstâncias que podem impor novas respostas.
Em suma: aquelas perguntas exigem uma reflexão atenta e permanente. Não há respostas definitivas. Mas há, sem dúvida, esta exigência básica: que essas questões sejam profundamente debatidas e que este debate, tão racionalmente quanto possível, não cesse.
O desejo (e a necessidade) do retorno das aulas.
2020 foi um ano de muitas dificuldades na educação. A pandemia impôs o fechamento das escolas. Isso acarretou problemas no aprendizado de crianças e adolescentes. A educação à distância, através da internet, tornou-se o modelo disponível. Os desafios e desconfortos trazidos pela restrição ao ensino presencial foram enormes.
Parece haver, depois desse ano excepcional, consenso quanto a um ponto: o contato presencial entre mestres e alunos é um recurso pedagógico inigualável. Mesmo nas escolas mais ricas, com alunos de boa condição financeira, as aulas remotas não conseguem produzir resultados comparáveis àqueles alcançados nas aulas presenciais. A educação é uma atividade humana – no sentido mais rigoroso deste adjetivo. A atividade do mestre não se resume à exposição de conteúdos; e a do aluno não resume a memorizá-los. Há uma dimensão mais profunda desta relação entre ambos – aluno e mestre – que supõe os sentidos, a intuição, a presença.
Esta convicção se aprofunda diante de um fator decisivo, especialmente no Brasil: a desigualdade econômica. Esse fator amplifica os problemas que naturalmente existem num modelo de educação à distância. Escolas mais pobres têm menos recursos tecnológicos. Seus professores têm menos condição de se preparar para utilizá-los. Seus alunos, não raras vezes, não podem atender às exigências mais básicas para estabelecer esse tipo de aprendizagem. Quantas crianças e adolescentes sequer têm acesso à internet?
Além disso, pais e mães tiveram imensas dificuldades para compatibilizar o tempo de suas atividades com o cuidado dos filhos que ficam em casa. De novo, esse é um problema que se agrava nos setores economicamente menos favorecidos da população. Em famílias mais carentes é mais comum que os filhos fiquem horas em casa sem os cuidados de um adulto; e é natural, nesses casos, que respondam mal às exigências do aprendizado.
Por último, mas não menos importante: a presença da criança e do adolescente na escola é fundamental a seu desenvolvimento. É importantíssimo à sua sociabilidade. O ambiente da escola projeta a vida do homem em grupo: a sala onde estuda, o pátio onde brinca, o amigo, o adversário, o amor – tudo isso é fundamental a que o estudante compreenda esta lição básica: somos animais sociais. À criança restrita ao ambiente doméstico, ainda que disponha de todo o conforto, falta algo essencial: as outras crianças.
Os riscos: é hora de voltar?
No entanto, a manutenção das aulas presenciais em Santa Catarina, neste momento de pico de contágio da COVID19, é medida polêmica. Há quem argumente que, apesar da boa vontade e do esforço empreendido, a suspensão temporária das atividades deveria ser adotada como forma de prevenção de surtos.
Segundo nota técnica emitida pela Fiocruz, o retorno das atividades presenciais nas escolas representa risco concreto para 9,3 milhões de Brasileiros, que são os adultos ou idosos portadores de doenças crônicas e que convivem com crianças e adolescentes entre 3 e 17 anos. Estima-se também que o risco à saúde dos profissionais de educação seja relevante. Entre esses profissionais, muitos integram os grupos de riscos. Por outro lado, as precauções impostas pelas normativas do Governo não afastam o elevado risco de contágio, especialmente se considerada a propensão natural das crianças para esquecer – ou ignorar – cuidados básicos como uso de máscaras, a higienização das mãos e o distanciamento. Somente em Blumenau, para citar um exemplo dos riscos a que estão sujeitos esses profissionais, 99 professores testaram positivo para COVID19 desde o início das aulas neste ano.
A disponibilidade de leitos de UTI em Santa Catarina neste momento atinge aproximadamente 90% de ocupação. Alguns locais de Pronto Atendimento estão sendo convertidos “UTIs” para atender a uma demanda crescente de casos graves. Como se não bastasse, as enfermarias de hospitais catarinenses estão igualmente cheias de pacientes que correm o risco de agravamento da doença a qualquer momento. Enquanto isso, a contaminação continua crescendo e os recursos materiais e de pessoal, por mais que tenham sido ampliados, estão sob forte pressão. Teme-se que Santa Catarina possa estar sujeita a tragédias semelhantes às que ocorreram no norte do país.
Enquanto a vacinação em massa não acontece, argumentam aqueles contrários à volta das aulas presenciais, os riscos precisam ser bem administrados e as medidas de contenção, por mais impopulares que sejam, não podem ser abandonadas.
E a conclusão?
Esse debate não pode ignorar um dado fundamental: as aulas voltaram. As crianças e os adolescentes retornaram às escolas. As salas de aula estão quase tão cheias quanto estavam antes da pandemia.
O “quase”, na frase que fecha o parágrafo anterior, deve-se a uma restrição importante: o distanciamento entre os alunos. Essa restrição surtirá um efeito óbvio: haverá menos alunos nas salas. Quanto menos pessoas num ambiente fechado, menos risco de contágio. Trata-se, como dito, de uma restrição importante. Mas talvez insuficiente.
Há ainda outro aspecto da legislação atual que não pode ser relegado. Todo aluno tem a opção de frequentar aulas remotas. Isso significa que, se os pais quiserem, podem evitar que seus filhos voltem à escola – sem prejuízo, em tese, de seu aprendizado. Por isso foi dito no início deste texto: as respostas que aqui se buscam, elas cabem a cada família.
E cabem também, por outro lado, a isso que chamamos de ‘sociedade’. Há que se ter em mente esta dualidade: há uma resposta em cada um, ecoando em cada consciência; e há uma resposta geral, como se fosse anunciada num imenso coro – ainda que seja um coro dissonante e, não raro, assustador. Há, enfim, respostas individuais e coletivas: aquelas afetam apenas seus filhos; estas, todos os estudantes – e, direta ou indiretamente, todos nós.
No fundo, é esse o dilema: de um lado, a convicção pessoal; de outro, as imposições da sociedade – especialmente quando assumem a forma de regra jurídica. Num contexto em que as convicções podem ser tão extremadas, e a sociedade tão dividida, esse dilema se exacerba. Se em meio a esse contexto há uma pandemia sem precedentes, tudo pode ficar ainda pior. Tragicamente pior.
É isso que deve ser evitado. Essa piora trágica. Essa exacerbação do dilema. Esse paroxismo discursivo.
Como evitar?
Há só uma resposta: confiar na razão. Corrigindo: postar-se racionalmente diante desse dilema. Pois a razão, a rigor, dispensa confiança: sua clareza é absoluta; sua verdade, apodítica. Devemos encarar racionalmente a pandemia e todas as questões que essa época excepcional nos dirige. O mesmo impulso racional deve estar na convicção mais íntima de cada pessoa e nas decisões das mais altas instâncias sociais. Todas as respostas, todos os argumentos, todas a formas de enfrentar esse dilema devem ser racionais.
A ciência e a lógica são instrumentos da razão. A ignorância e o ódio, seus inimigos. A busca das respostas àquelas questões iniciais deve se nortear por aqueles instrumentos. Não se trata de escolher entre a crença em convicções íntimas e a obediência às regras sociais. Trata-se de sempre questionar umas e outras. E de submetê-las, as convicções e as regras, ao jugo da razão.
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