Nas redes sociais e em locais até mais sagrados, Anderson França escreve muito e bem e demais. Sobre tudo: o prosaico e o poético, a substância e a forma, o mundo e o eu (no caso, o dele). Ele achou uma linguagem só sua. Poesia na prosa. Madureira em Lisboa. O som da rua no lirismo da torre, ou este naquele, pra ser mais exato. Chegou a uma posição alta como uma árvore de raízes fundas. Dali pode opinar sem medo
De transgredir,
De ofender,
De errar,
Pois é transgressor o seu texto, e deve ser, e é ofensiva sua verdade, e deve ser, e é corajoso seu erro, quando erra.
Anderson França talvez tenha errado. Escreveu sobre o Afeganistão. Sobre o Talibã. Sobre o confronto entre e Ocidente e Oriente. Muito do que escreveu é brilhante. Sua verve, seu sarcasmo, seu tijolaço na cara, tudo isso sempre ressalta sua abordagem. Mas também amplifica seus erros. E repito: agora talvez ele tenha errado. Talvez.
Anderson defende a liberdade do povo afegão de decidir seu governo, suas leis, sua moral. Exige que a gente respeite a diversidade dessa cultura. Aponta a violência e a arrogância do Ocidente. Denuncia a frivolidade de quem quer combater o Talibã com posts nas redes sociais.
Muito do que diz me parece preciso. Mas tenho três objeções.
Não é possível dizer que o povo afegão decidiu ter um governo talibã. Não houve eleições. Não houve consultas. Não há dados. Não se pode falar em “autodeterminação”. Daqui nós só vemos homens armados no palácio em Cabul; e muitos homens e mulheres e crianças desesperados. Talvez a maioria apoie o talibã. Mas parece haver pânico em quem forma a minoria, ou as minorias. As cenas do aeroporto parecem reais. O pavor ali flagrado é suficiente pra justificar toda a preocupação. Mesmo a preocupação hipócrita de madames do instagram e de intelectuais do Leblon.
Há um consenso quanto ao período talibã entre 1996 e 2001: foi trágico. As artes e as mulheres e as religiões não obedientes à dura lex, tudo foi reprimido e violentado e quase exterminado. Pode-se contestar esse consenso. Pode-se chamá-lo ocidental ou branco ou cristão. Mas não se pode fingir que ele não existe.
A grande questão – o cerne denso daquele ‘talvez’ que escrevi acima – é o relativismo da posição de Anderson. Sua premissa me parece verdadeira: não há cultura superior ou inferior. A nossa, a cultura do Ocidente ou da Europa ou do Leblon, não pode se impor na marra. Certo, concordo. Mas pergunto: e a tragédia
das mulheres que não querem burca,
dos homens que não querem islã,
dos gays que só querem ser gays
sob as leis do Talibã?
Temos que aceitar essa tragédia? Temos que enfiar toda essa violência num pacote e guardar na vasta estante empoeirada das “outras culturas”? Temos que engolir o horror?
Eis o ponto: o horror. Ele nos iguala. Ou melhor: ele é igual em todos nós, ou quase todos. Há algo na nossa natureza que se horroriza. Na nossa humana natureza. Não tenho certeza, mas acho que asiáticos e africanos e americanos e europeus e brasileiros brancos e pretos e ricos e pobres, cada um de nós é capaz de se horrorizar com essa tragédia. Acho que pode nascer daí o que chamaríamos, meio à moda dum Kant, de valor absoluto.
Sei que isso pode soar como ilusão. Sei que essa ilusão parece ter sotaque do Leblon. Sei que Anderson é capaz de me metralhar com frases que evocam a experiência de viver onde Brasil e Afeganistão parecem iguais. Sim, isto também é algo que iguala: sobreviver sob o poder do outro. Ele pode escrever como um sobrevivente. Isso dá força a seu texto. O meu, iludido, perderá esse duelo. Basta a Anderson dizer:
o Afeganistão
é o Brasil
porra!
E terá desferido, na testa do meu texto, o golpe fatal.
Então enterraremos o cadáver de meu texto aos pés da lápide em que estará inscrito: “há um ideal”. Imagino a cena: um por um, todos os que vieram ao funeral vão embora; resta Anderson, sozinho, que lê a inscrição em voz alta, ajoelha-se e risca na pedra um ponto de interrogação.
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