Opinião

“Cala a boca, porra”

“Cala a boca, porra”

Confesse: você já ouviu a fala que dá título a este texto. Aliás, ouviu muitas vezes. Nosso presidente a tem usado com enorme frequência. Não com seu cachorrinho, mas com jornalistas que o entrevistam. Bolsonaro usa e abusa dessa fala na condição de Chefe da Nação. Se ele dissesse apenas “é favor calar-se, Senhorita Jornalista”, já seria grave, pois seria um ostensivo gesto presidencial de calar a imprensa. Mas ele berra “cala a boca” e depois “porra”. Além de grave, é vulgar. A vulgaridade dá um tom mais violento ao gesto. 

Essa vulgaridade – nas falas, nos gestos, nos modos – é uma característica marcante de Bolsonaro. Tão marcante que deve ser adrede: parece que ele faz questão de ser vulgar; parece que assim ele define seu estilo. Mas não só ele: os tantos que o apoiam adotam deliberadamente o mesmo estilo. Olavo de Carvalho disse que, na presença de certa condição (que, aliás, parece estar próxima de ser confirmada), lamberia “o cu do Caetano Veloso”. Eduardo Bolsonaro, ao ser perguntado se usaria máscara, mandou “enfiar (a máscara, supõe-se) no rabo”. O áudio daquela célebre reunião do alto escalão do governo federal, tornado público graças às acusações de Sérgio Moro, tinha dezenas de “porras” e “rabos” e “cus”. Essa vulgaridade se alastra pela República. Diante dela, a oposição também se torna vulgar. As discussões no parlamento descambam a todo momento. Os palavrões passaram a compor a linguagem oficial. O “cala a boca, porra” foi institucionalizado. 

Mas tudo isso é apenas retórica. Qualquer idiota percebe que Bolsonaro, Olavo ou qualquer outra figura do cenário político brasileiro usa desta vulgaridade com a intenção de persuadir. Trata-se de um recurso patético, no sentido rigorosamente aristotélico do termo. A arte da persuasão, segundo o filósofo, pode destacar a autoridade moral do argumento, a sua força lógica e o seu apelo emocional: ethos, logos e pathos. A vulgaridade nos afeta emocionalmente. A “porra”, o “rabo”, o “cu” nos impactam e por isso sugerem autenticidade. O discurso vulgar é aquele que utilizamos nos estádios, nos botecos, nas brigas. Temos a impressão de que nesse discurso não há o filtro da razão: parece que ele sai sempre improvisado, impensado, sincero. O cara fala “porra” e logo nós concluímos: “ele tá abrindo o seu coração”. E assim essa fala nos afeta. Ela traz sobre nós uma carga emotiva. Ela é, numa palavra, patética. 

O páthos do momento político atual é talvez o mais grave sintoma da situação que vivemos. Não se trata apenas de um traço estilístico do bolsonarismo; é um sinal dos tempos. A vulgaridade tornou-se um elemento decisivo da política. Ser vulgar é uma condição pra ser acreditado e, muitas vezes, pra ser ouvido. Essa é a nova linguagem dos espaços públicos: das redes sociais aos processos judiciais, das artes às liturgias. Insisto: é uma linguagem nova – um traço claro e distintivo da contemporaneidade.

Essa densidade patética da linguagem contemporânea é o maior prenúncio do futuro soturno que nos espreita. A linguagem é o nosso horizonte. O que vemos aí, no horizonte que este nosso tempo descortina, é o violento confronto de discursos feéricos, de gengivas expostas, de hálitos e salivas apodrecidos. Nesse confronto o ethos e o logos são cada vez menos decisivos. Cada vez mais, as batalhas retóricas se definem a partir da concatenação de palavras rudes, de gestos afetados, de posturas exóticas ou paroxísticas. A linguagem se atrofia. As possibilidades humanas, também. A utopia civilizatória desaparece na nuvem sombria do longo século que temos pela frente. É a conjuntura ideal para o florescimento de algo como o bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro. 

“Cala a boca, porra”, você terá dito ao fim do anterior parágrafo: bolsonarista ou não, você achou meus vaticínios muito lúgubres. Sim, eu posso me calar. Ou posso, com uma vulgaridade mais pueril, mandá-lo “catar coquinhos”. Ou posso simplesmente ignorá-lo. Mas nem eu nem você podemos negar que esse estúpido “cala a boca” reflete o esgotamento das razões, dos argumentos, da linguagem desta nossa época. Nas tantas falas que se tem falado – do presidente ao povo, de mim a você, de você a si mesmo – cada vez mais parece restar somente essa estéril e aziaga estupidez. 

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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