Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:
Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando:
“Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim.
E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras.
E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!”
Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.
(Gibran Khalil Gibran).
É comum que se compare o desenrolar das fases da vida com uma peça de teatro, e é com base nessa metáfora que passo a tratar do palco no qual todos atuamos desde a primeira inspiração que insufla ar nos pulmões de nossos corpos, até a última expiração que os esvazia em definitivo.
Para cada um de nós, a vida se desenvolve sempre sobre o palco da nossa presença, no qual desenvolvemos incontáveis papeis ao longo do tempo, os quais variam a depender do cenário e dos demais personagens que nos acompanham em cada ato.
Ora somos o filho amoroso, o irmão que briga, o marido preocupado, o pai zeloso. Em outro momento podemos ser o aluno curioso, o profissional dedicado, o aprendiz desajeitado, o idoso carente, o amigo presente, e assim por diante.
Porém, quando as cortinas se fecham vão-se os personagens e fica o ator, somente ele, que muitas vezes já não faz mais ideia de quem realmente é. De tanto interpretar papeis e de se (con)fundir com eles, acabou esquecendo de si.
Esse tema foi abordado com propriedade por Fernando Pessoa em Tabacaria, conhecido como o mais extenso poema já escrito em língua portuguesa. Em um determinado trecho ele diz o seguinte:
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses, nem estudasses, nem amasses, nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Sim, sublime, iluminado justamente porque tomou conhecimento de que ele não era as máscaras que se grudaram ao seu rosto durante o teatro da vida, as mesmas sete máscaras das sete vidas do Louco de Gibran.
Aquele que consegue descolar as máscaras do rosto de sua existência física e identificar o universo primordial que existe em seu íntimo (apesar de tudo e alheio de tudo), desvelando as camadas culturais impostas ou sugeridas pela sociedade, pela família, pela profissão, pela religião e até pelo instinto de sobrevivência, atinge o sublime e tem a possibilidade de obter lampejos ou até de sentir-se fundido com aquilo que é, com a suprema e atemporal consciência-realidade em fluxo.
Há dez anos, influenciado por antiga filosofia orienta, redigi um curto poema sobre o que não sou, afinal – pensei à época – examinando o que sobra, melhoram as chances de perceber o que resta. Os versos são os seguintes:
Eu não sou minha ascendência,
tampouco meu estado civil ou profissão.
Também não sou minha aparência, cor, altura,
sexo, nem formação.
Eu não sou o que querem que eu seja,
tampouco aquilo que pretendo ser.
Muito menos o invólucro, o ego, a posse,
a carne, o sangue e o querer.
Mas o que resta, pode alguém perguntar? A síntese do que resta junto ao oceano pacífico e silencioso do Ser, escapa à aptidão descritiva; não pertence ao universo da mente concreta porque os parâmetros da razão também são relativos e somente funcionam quando ajustados à frequência mental estabelecida como padrão.
Não é por acaso, portanto, que Gibran e Fernando Pessoa refiram-se à loucura. A sanidade mental também é um padrão determinado pela mente racional (a mesma que tem edificado este mundo supostamente “são” no qual vivemos). Tudo o que escapa ao padrão de sanidade ditado pela mente racional é loucura, é transtorno. Quem não atinge ou não deseja o padrão é doente diante da sociedade formatada que, com medo, tal como o menino no telhado de Gibran, grita: “é um louco!”
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