Entre as virtudes de nosso Presidente, a que mais me encanta é a capacidade de adaptação. Darwin, se vivo estivesse, sairia correndo da Ilha de Páscoa e viria ao Brasil estudar esse fenômeno da evolução das espécies. Jair está sempre dois passos na frente de seus predadores. É a figura mais bem adaptada ao ambiente político atual. É a mariposa negra dessa época nebulosa.
Jair elegeu-se com um discurso emprestado de Trump. Esse discurso precisava ser radical: ambos se anunciavam como guerreiros que combatem o sistema, que trazem verdades das profundezas, que não se limitam a usar as armas da política. Essa radicalidade precisava de alguém pra chamar de vilão, de herege, de inimigo. Uma velha ideia foi resgatada: o “comunismo”. Um novo inimigo foi apontado como a expressão do poder comunista: a China. Todos os males do mundo – do corona vírus à orientação sexual duvidosa dos ursinhos de pelúcia – foram atribuídos aos chineses. E aí foi barbada: bastava eles falarem o que falaram. Nós vimos que eles tinham a “coragem” de apontar esse inimigo. Muitos de nós concluímos que eles podiam nos liderar nessa “guerra” contra a “ameaça comunista”.
Então Trump se foi. O Capitão precisava se adaptar novamente. E se adaptou, sem demora. Na última terça-feira Jair desembarcou na Rússia. Biden, Johnson, Macron e todos os líderes ocidentais torceram o nariz. Mas nosso Presidente preferiu o longo e ereto nariz de Putin – também ele um mestre da arte de se adaptar. O gesto não poderia ser mais simbólico.
A visita à Rússia se insere num contexto marcado por dois eventos históricos. Primeiro: a ameaça de invasão da Ucrânia que, dizem muitos, pode ser a faísca de uma guerra mundial. Segundo, e muito mais importante: o acordo entre China e Rússia, assinado no último dia 4, que estabeleceu o que as duas nações chamaram de uma “aliança sem limites”. A verdadeira razão por que a Rússia voltou a ser a protagonista do noticiário internacional deve-se menos à Ucrânia do que à China. Putin age como o menino abusado que, apontando pro amigo poderoso à sua retaguarda, chama todo mundo pra briga.
Nosso presidente percebeu isso, claro. No preciso momento em que a aliança entre Rússia e China é escancarada, ele foi a Moscou ajoelhar-se em frente ao túmulo dos soldados do exército vermelho. Jair se elegeu apontando o “comunismo” chinês como seu inimigo – e se reelegerá aliando-se a ele. É genial. É uma obra-prima do darwinismo político.
A aproximação de Bolsonaro com a China, evidentemente, não começa agora. Se os chineses já eram nossos principais parceiros comerciais, tornaram-se ainda mais relevantes nos últimos anos. O ex-Ministro Ernesto Araújo, um dos mais fieis seguidores do Guru Olavo, não deixou de lamentar que o governo brasileiro tenha “entregue o 5G aos chineses”. Os interesses nacionais, mais do que nunca, estão em mãos chinesas. A viagem de Jair a Moscou apenas escancara o alinhamento entre os dois países – ou melhor, entre os três: Brasil, China e Rússia.
Mas nosso Presidente não sucumbe a rótulos fáceis. Ele sabe que os apoiadores mais fieis não aprovam esse alinhamento. E sabe também que ocorre o oposto com seus mais empedernidos detratores. Ele então manipula os dois grupos. Aos apoiadores, ele repete a velha estória: segue se apresentando como o guerreiro que combate uma genérica ameaça comunista – tão genérica que a estória provoca em Pequim não mais que gargalhadas. Dos detratores, ele se aproveita: o discurso de vastos setores da esquerda, a celebrar a aliança entre Pequim e o Moscou como uma emancipação diante do imperialismo americano, dá sentido à posição do Presidente e credibilidade junto àqueles que, indiferentes a cores ideológicas, são os atores mais poderosos da cena política e econômica (ou as figuras ocultas que controlam os títeres sobre o palco).
É claro que o gesto do nosso Presidente tem um preço. As nações ocidentais podem considerá-lo precipitado – e sobretudo traiçoeiro. Já a Rússia e a China vão cobrar caro pelo apoio – especialmente nestas circunstâncias, em que Jair dele necessita tão desesperadamente. De fato, o Brasil passa por dificuldades que realmente não podemos disfarçar. A inflação, a estagnação, o desemprego, a fome. Tudo isso fragiliza nosso Presidente. O apoio sino-russo talvez não seja, pra ele, uma opção. Talvez nem só diante do túmulo dos soldados comunistas ele vá se ajoelhar.
Mas não importa. Quem realmente apoia nosso Presidente está disposto a tudo. A pagar o alto preço que nos cobram a Rússia e a China. A se ajoelhar diante das altas instâncias do Oriente. A engolir a miséria que assola o país. O que realmente importa é que Jair esteja no poder. Afinal, também na política vigora o mais feérico darwinismo; e ao Capitão, como às mariposas negras de Manchester, resta se adaptar ao ambiente e lutar por seu grande propósito: a sobrevivência.
Comentários: