Quando se trata de futebol, eu desconfio do presente. Sim, do presente: o tempo atual, o hoje, o agora. O Messi, por exemplo, é um jogador do presente: então desconfio dele. Sei que é um craque. Sei que ali, nas quatro linhas, ele sabe tudo. Sei que a bola se derrete a seus pés. Mas até hoje desconfio. Ou melhor: desconfiava. Até ontem.
Essa desconfiança tem dois culpados: meu pai e o Zico. Um me ensinou a reverenciar o passado, o outro comprovou que essa reverência era justa. Em 86 descobri o futebol. Em 87 me viciei. Entre a Copa do Mundo e a Copa União, fui do trauma ao êxtase. Um e outro protagonizados pelo Zico: ele jogou fora o tetra do Brasil, ele ergueu a taça do tetra do Flamengo. Nesse meio tempo meu pai me contou a história do futebol, desde as bicicletas do Leônidas até as pedaladas do Cruyff. Mas falou sobretudo do Zico. Mais ou menos como o Homero falava do Ulisses. Talvez porque ele, meu pai, quisesse curar meu trauma. Não sei. Em todo caso, a Copa União foi a minha Ilíada: levando o Flamengo à conquista, o camisa 10 parecia jogar como se tivesse a deusa Atenas sussurrando em seus ouvidos. Então entendi o que significava genialidade.
O Zico, em 87, estava no fim. Exatamente por isso ele justificava a reverência ao passado: seus últimos lances de gênio eram só uma pista do que ele havia sido no apogeu. Isso também aconteceu com o Júnior em 92. E com o Cerezo, em 93, no mundial interclubes. Todos eles, longe da melhor forma física, desfilaram em conquistas históricas. Tudo isso me mostrava que o passado guardava o tesouro do futebol. A coisa só piorou quando comecei a ler Nelson Rodrigues. Se um Cerezo jogava tanto, quanto mais não jogava um Didi? Se o Júnior sobrava aos quarenta anos, o que não era o Nilton Santos aos trinta? Se o Zico era um gênio, o que se dirá de Zizinho?
O título de 94 não ajudou. Romário era apenas a exceção que confirmava a regra. O time campeão era apenas bom. Os outros, menos. Nelson Rodrigues não teria escrito um parágrafo sobre aquela copa. Somente no início do novo século minha ‘desconfiança do presente’ cedeu um pouco. A seleção do penta tinha pelo menos três grandes craques. O Real Madri tinha outros tantos galáticos. Os Ronaldos e o Zidane me mostraram que a mais legítima genialidade brotava na nova estação. Mais que isso, eles me deixaram reconhecer – retrospectivamente – a genialidade de jogadores do meu tempo: um Klinsmann, um Van Basten, um Franco Baresi. Mais que todos, um Maradona.
Então, em 2006, houve aquela copa horrorosa. Toda uma geração de craques parece ter se perdido naquele ano terrível. No horizonte dessa terra arrasada surge o Messi. Desde então ele impera sobre o futebol. Há o também o Cristiano, é verdade. Há quem veja entre eles uma disputa. Não eu: acho o argentino incomparavelmente melhor. Vivemos a “era Messi” há pelo menos quinze anos. Pra mim isso é um fato histórico incontestável. E sempre lamentei esse fato. Até ontem.
Sempre achei que a ‘era Messi’ deve-se menos à sua genialidade e mais à mediocridade do futebol atual. Afinal, ele e o gajo à parte, quem é o grande jogador dessa “era”? Iniesta? Xavi? Modric? Kroos? Todos ótimos jogadores, mas… São craques? Lendas? Gênios? (Há o Mbappé, é verdade; mas com ele já se inicia uma outra “era”). Pensem no Neymar. Nesses quinze anos ele é, sem dúvida, o maior jogador brasileiro. Pombas, o Neymar? Em uma década e meia a nação de Garrincha não produziu um só jogador melhor que… o menino Ney? Minha ‘desconfiança do presente’ nunca foi tão forte quanto nos últimos quinze anos. Sempre achei medíocre a ‘era Messi’.
Ele, claro, é exceção a essa mediocridade. Sempre o reconheci como um gênio. Mas um gênio pálido. Sim, ele tem todas as armas: a técnica, a agilidade, a lucidez. Mas lhe falta a natureza furiosa do guerreiro. Mais que furiosa: mística. Nos grandes craques – e guerreiros – do passado sempre houve algo como uma intercessão divina: Atenas sussurrando nos ouvidos de Ulisses. Messi é apenas um jogador altamente virtuoso: nenhuma metafísica intercede em suas conquistas.
Sempre achei isso. Até ontem. Terminado o jogo contra a Croácia, notei que há algo mais com o Lio. Algo que sugere a ação de forças insondáveis. Algo que faz a história alcançar, através dele, alguma culminância. Talvez isso se deva à paixão dos argentinos ou à vibração dos bilhões de admiradores do craque. Pode ser. O certo é que se trata de algo que transfigura o homem, que parece (assim como foi com Abraão) rebatizá-lo, que faz dum Messi um Messias. Algo místico, sem dúvida. Tão poderoso que é capaz de consumar uma era. Tão evidente que me faz perceber, enfim, a grandeza deste nosso tempo.
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