Ontem, no ‘dia do agricultor’, a secretaria de comunicação do governo federal – SECOM – “homenageou” esses trabalhadores com uma figura curiosa: um homem nas sombras, de que só se vê a silhueta, segurando uma arma. Logo começou a gritaria e a SECOM retirou a imagem do ar. Mas o recado estava dado.
O homem armado, embora sombrio, transmite uma mensagem claríssima – especialmente se compreendermos que ela não fala de agricultura, mas de agronegócio. Na verdade, são duas mensagens. Primeira: o agro (apelido que o próprio negócio criou pra si) está disposto a tudo para manter e aumentar seu poder, inclusive às ações mais violentas. Segunda: o governo federal está a seu lado, inclusive – e sobretudo – nas tais ‘ações’. A SECOM falava de violência. Pudera: é o tema preferido do governo, é o que ele tem de mais explícito a oferecer.
O agronegócio não é a agricultura. Proponho que se reserve àquela palavra um sentido mais restrito e a esta, um mais largo e profundo. A agricultura é a relação do homem com a terra mediada pelo trabalho. O agronegócio é a atividade agrícola baseada na monocultura, no latifúndio e na concentração de rendas (e de terras). Nesta atividade, o trabalho do homem tem um papel coadjuvante. Para o agro, o homem não é o fim: o fim é o lucro.
Jackson Torres, em artigo intitulado “o agronegócio para além do PIB”, escreveu aqui na Abertura:
“O fato de o PIB do setor ter tido um expressivo aumento em pleno ano pandêmico não significou mais vagas de trabalho. Pelo contrário: a população ocupada no agronegócio somou 17,3 milhões de trabalhadores, queda de 5,2% em relação a 2019, segundo o antes referido CEPEA, da ESALQ/USP. O extraordinário resultado econômico do agronegócio parece também não ter facilitado o acesso da população brasileira à alimentação, que tem sofrido em virtude do aumento generalizado dos preços dos alimentos no mercado interno, o que possivelmente contribuiu para o recentemente noticiado agravamento da insegurança alimentar dos brasileiros.”
O mesmo artigo tratou dos efeitos ambientais do agronegócio. Destacou, por exemplo, que “20% da soja brasileira produzida na Amazônia e no Cerrado e exportada para a União Europeia (UE) saíram de áreas de desmatamento ilegal”. A “plantation” – para usar um termo tão caro a Celso Furtado, que Jackson cita no início de seu artigo – avança sobre a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal. Para o agro, a natureza não é o fim: o fim é sempre o lucro.
O grande problema é que esse lucro é de poucos. Em grande parte, de estrangeiros. A cadeia global de produtos agropecuários é dominada pelo oligopólio de algumas gigantes transnacionais do setor. No Brasil, elas são responsáveis por grande parte do financiamento da produção, além de dominarem os processos tecnológicos para desenvolverem sementes, fertilizantes e agroquímicos, sem contar o maquinário agrícola. Grande parte dos lucros de toda essa cadeia produtiva vai ao exterior. Pior: durante o governo Bolsonaro, o acesso a imóveis rurais por estrangeiros foi bastante liberado. O capital externo concentra poder não só sobre o grande negócio da nação, o agro, mas também sobre as terras indispensáveis a esse negócio – inclusive aquelas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal.
Esse poder, entretanto, não se exerce apenas com leis e contratos. Estar no Brasil, apoderar-se do “nosso” grande negócio, apropriar-se das “nossas” terras, tudo isso supõe confronto – real, campal, violento. Povos indígenas, populações nativas e movimentos sociais são os oponentes mais imediatos. Mas também instituições públicas e setores da sociedade civil resistem a esse processo. O exercício daquele poder supõe o serviços das elites agrárias brasileiras. O processo de elitização do agro é também nacional. Os donos do negócio estão fora da Brasil, mas os barões estão aqui. O governo federal sela esse acordo entre os senhores do mundo e os do Brasil. O enorme poder de todos esses senhores, mais do que qualquer outro, mantém a base desse governo. E já foi dito aqui: para manter e aumentar esse poder, eles estão dispostos a tudo – inclusive às ações mais violentas.
Compreende-se então a simbologia da campanha da SECOM. O homem armado está nas sombras: ele é o sujeito obscuro de um poder disposto a tudo. Não se trata, o tal homem, de um agricultor. Os braços que empunham a arma não são os que trabalham a terra. O homem nas sombras simboliza o senhor dos lucros, a personificação da oligarquia mundial do agronegócio. Seus braços simbolizam a elite agrária brasileira e o governo. A arma explicita a violência que estão dispostos a cometer.
A mensagem é clara: “não importa o mal que o agro faça, seus lucros não podem parar”. E então, sem qualquer sutileza, adverte: “não ouse resistir”. A imagem do homem armado logo saiu do ar. Mas o recado estava dado.
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