Opinião

O convescote

O convescote

Não foi pouca a mobilização. Não foi pouco o ardor. No sete de setembro havia multidões em Brasília, na Paulista, em muitos cantos do país. Cada pessoa ali presente bradava apoio ao Presidente. Ou melhor: intimava-o a tomar o poder. Queriam o fim da Suprema Corte. O fim do Congresso. O fim de tudo o que impedisse a tal tomada do poder. Queriam um gesto de ruptura: armas nas ruas, instituições fechadas, Jotabê no comando – e acima da lei.

Então Jotabê refugou. Como alguns caminhoneiros bloqueassem estradas, alguém soprou no ouvido presidencial o óbvio: se a economia já vai muito mal, o bloqueio só vai tornar as coisas piores. O mito parou um minuto pra refletir. Lembrou que não houve o mais tênue movimento das Forças Armadas em apoio à sua proposta golpista. Considerou o justo receio de ter problemas com a Justiça. Então mudou de ideia. Discursou à nação lendo a famosa carta que afetava remorso e implorava desculpas. E assim, repito, refugou.

Foi um episódio dramaticamente patético. Quem tenha um pingo de compaixão terá sentido pena dos apoiadores de Jotabê. Não porque eles tenham se desapontado: já que eles queriam o golpe, há que se comemorar seu desapontamento. Mas porque foram submetidos ao maior vexame da nossa história republicana. Desde a proclamação de Deodoro, nada nunca foi tão ridículo quanto essa comédia em dois atos: primeiro, a turba pedindo a Jotabê que golpeasse as instituições democráticas; depois ele, Jotabê, choramingando perdão ao Alexandre de Moraes. Detalhe lívido: sobre o Presidente arrependido pairava o espectro macabro de Michel Temer.

Eis onde eu queria chegar: Michel Temer. Ele foi o grande protagonista de um vídeo, vazado dias depois do encontro com o Presidente (o atual), que deixou a audiência atônita (ou nem tanto). O vídeo registra um convescote entre meia dúzia de eminências pardas. Sentados à mesa, os convivas assistem a um comediante. Ele faz uma imitação caricata de Jotabê. As falas, tomadas literalmente, são pesadíssimas. Mas todos riem. Temer, em especial, gargalha gostosamente.

Pergunto: como um vídeo desses pôde vazar? Há duas alternativas: ou o vazamento foi intencional, ou não. Cada uma delas projeta verdades intestinas (literalmente) sobre nossa República. Vejamo-las.

A primeira é a alternativa mais provável. O vídeo foi feito pelo marqueteiro do Temer. Ele não cometeria o “descuido” de expor a “privacidade” de senhores tão altaneiros. A questão é: por que quiseram divulgá-lo? A resposta é óbvia: porque o vídeo é uma mensagem. Mas qual mensagem? E pra quem? Talvez pra outras eminências pardas. Talvez eles queiram dizer a esses outros altos senhores: “estamos de acordo, Jair já era”. E com isso lhes enviar um recado implícito: “vamos discutir seriamente uma alternativa pra derrotar Lula?”

A segunda possibilidade é a que mais me assusta. Eles, os convivas do convescote, alguns dos homens mais poderosos do país, meia dúzia de magnatas que definem (em larga e triste medida) os rumos da nação – eles riem de Jotabê. Riem sincera e sarcástica e despudoradamente. Gargalham. O Presidente, aos seus olhos (que lacrimejam de tanto rir), é um palhaço. Acontece que não vemos Jotabê assim. Uma parte do povo o venera. Outra parte, a maior, tem-lhe medo ou repugnância, ou ambos. Pro bem ou pro mal, Jotabê não tem graça nenhuma. Se os homens do convescote tripudiam de sua figura, isso mostra o quanto são alheios à nossa realidade. Eles riem de alguém que parece, a algum de nós, um mito, e a outros, um monstro: nunca apenas um palhaço. No fundo, portanto, eles riem de nós.

Os tais senhores de nosso subdesenvolvimento, sentados à mesa farta, riem de nossa desgraça: do fanatismo de uns, do medo e do nojo de outros. Essa risada é doentia. Não só porque denota sua desumana indiferença, mas sobretudo porque é prova de sua demência: eles agem como Nero gozando o espetáculo de seu reino em chamas.

Reino em chamas: no dia 8 de setembro os mercados haviam desabado, as estradas estavam interrompidas, o golpe (e o contragolpe) pairavam no ar. O próprio Jotabê parecia chocado com a tragédia a que ele nos conduziu. Então Temer é chamado. Redige uma carta ao mercado. Arruma uma trégua com o Supremo. Esconde atrás das cortinas o incêndio que nos consome: ele é exímio em canastrices teatrais. Dois ou três dias depois, ele e seus magnatas são flagrados diante de uma caricatura – a de Jotabê – que personifica toda essa tragédia. E todos reagem da mesma forma: com gargalhadas.

Eles, as eminências pardas do convescote, são cínicos ou perversos ou loucos. Talvez sejam tudo isso. Em todo caso, a menos que sejamos capazes de reagir, estamos fodidos.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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