Opinião

O domingo da mídia muda

O domingo da mídia muda

Mesmo o mais inocente dos crédulos, o mais cândido dos ingênuos, o mais manso cordeiro das ordeiras hostes virginais – mesmo essa alma iludida e caricata notou, no último domingo, o grande acordo firmado pelos grandes veículos da imprensa brasileira: não divulgar as manifestações de 29 de maio. Esse acordo foi responsável por um episódio tão bizarro que se tornou histórico, e que por isso até merece algum título: “a manhã dos jornais silenciosos”, por exemplo; ou, se quisermos alguma aliteração, “o domingo da mídia muda”; ou ainda, mais rigoroso: “o dia da imprensa conivente”.

Houve imensa reação a esse episódio. Uma tal reação, tão vasta e indignada, que essa mesma imprensa – silenciosa e conivente – não foi capaz de abafar. Até o Jornal Nacional acabou fazendo uma matéria destacando, com algum rigor, a dimensão dos protestos de sábado – se bem que a matéria tenha saído só na segunda. Em todo caso, a reação fez seu barulho. A desfaçatez, a perversidade, o delírio elitista e plutocrata por trás do silêncio da nossa “grande mídia”, tudo isso foi destacado com a ênfase possível.

Pouco se disse, entretanto, sobre um detalhe essencial desse episódio: a motivação por trás daquele ‘grande acordo’. Há uma questão básica, nesta precisa etapa do experimento histórico iniciado em 2018, que precisa ser enfrentada: por que a grande mídia se calou no domingo?  

Dizer apenas que a grande mídia aliou-se ao Presidente não ajuda em nada na resposta. Por duas razões básicas: grande parte da grande imprensa tem batido com alguma contundência no Presidente; e grande parte da grande imprensa, apesar disso, sempre esteve ao seu lado: tal como Sugar Ray Leonard, ela conduz o “adversário” às cordas e teatralmente protela o nocaute. A questão é: por que justamente agora, diante das manifestações de 29 de maio, houve esse silêncio unânime?

A resposta parece-me a seguinte: medo. As altas instâncias do poder econômico, que naturalmente influenciam (se me permitem o eufemismo) as posturas da grande mídia, temem algo como ocorreu no Chile e na Colômbia. As condições para isso estão desde logo postas: a mesma agitação, os mesmos movimentos, os mesmos gritos e músicas – tudo isso, sinais de que a multidão aguarda “ver emergir o monstro da lagoa”. Um monstro que, todos sabemos, ruge alto nos ouvidos daquelas ‘altas instâncias’ mencionadas no alto deste parágrafo.

Mas, supondo-se haver esse medo, por que poupar Jotabê? Não seria mais fácil e bem mais eficiente, para esses que temem o ‘monstro’, entregar o Presidente à multidão? Em palavras bem denotativas: não seria bem mais adequado, considerando os interesses dessas ‘altas instâncias’, simplesmente canalizar a ampla insatisfação popular para (mais) um impeachment?

A resposta mais óbvia indica que sim. Mas, em se tratando da grande mídia e das altas instâncias, nem sempre a mais óbvia é a correta. Há uma outra resposta que me ocorre. Segundo ela, o temor a ser combatido não é a causa da insatisfação popular, mas sua organização. Não preocupa às altas instâncias o sofrimento do povo, mas sua eventual reação. Não é Jotabê o que elas temem, mas o “monstro”: o povo desperto e enfim consciente de sua condição. O povo que, atordoado, permanece atento – pra citar outros versos daquela mesma canção.

O Presidente, diante deste temor, é talvez o instrumento ideal nas mãos das altas instâncias. Ele é dono de um moralismo anestésico junto a amplos setores da sociedade. Ele tem uma completa indiferença aos abismos de nossa desigualdade social. E sobretudo: ele não tem vergonha de descer a porrada. Aliás, bem o contrário: esse parece ser seu grande desejo – inclusive na acepção mais freudiana do termo. As altas instâncias brasileiras costumam ter esta postura: entre mitigar a dor do povo e oprimir sua revolta, sempre escolheram a segunda alternativa. Por que fariam diferente agora?

É preciso considerar esta hipótese: diante da insatisfação popular que já não se contêm nas consciências das pessoas e nas redes sociais, Jotabê pode recobrar seu apoio junto às altas instâncias de nossa sociedade. Embora ele seja a causa principal dessa insatisfação, pode se beneficiar dela. Paradoxo lívido, diria Rimbaud.

É só uma hipótese, admito. Mas atenção: nesta semana houve um episódio assustador – “o domingo da mídia muda”, segundo a expressão aliterada que escolhi para o título deste artigo; e esse episódio, tão lividamente quanto possível, parece confirmá-la.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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