Meu avô materno dizia que era neto do neto de Bento Gonçalves. Sim, ele mesmo: o “herói” das Guerras Cisplatinas, o grande artífice da Revolução Farroupilha, o primeiro Presidente da República Rio-grandense – a figura histórica que virou nome de cidade e protagonista de minissérie da Globo. Trabalho com a hipótese de que Bento Gonçalves é avô do avô do meu avô.
Ele, meu avô materno, contava que Bento Gonçalves estava em fuga das tropas imperiais quando se escondeu no Escalvado. Sim, ali mesmo: no pequeno bairro de Navegantes, às margens da BR 470, na última grande curva do Rio Itajaí. Na verdade, Porto Escalvado. O nome dessa comunidade sugere talvez um fato histórico de suma importância: ali foi o primeiro porto do grande rio catarinense.
Meu avô era um velho debochado. Ninguém nunca levou a sério essa história. Ou estória. Mas eu levei. Não porque eu me orgulhasse da possível linhagem herdada de uma figura controversa, escravocrata e latifundiário. Mas porque acho que meu avô, embora debochado, acreditava nisso.
Há provas que justifiquem essa crença? Eis a questão. Estamos falando de historiografia. Das fontes de onde a história é resgatada. Ou revelada. Ou feita. Sim, isso: a história, ao ser revelada, é sempre – também – feita. Como fazê-la?
Vamos aos “fatos”. Bento Gonçalves foi preso em outubro de 1836 e retornou ao Rio Grande, após a fuga da prisão na Bahia, em dezembro de 1837. Não há informações seguras sobre quanto tempo passou entre a fuga e a chegada. Tampouco sobre o trajeto percorrido entre a Bahia e o Rio Grande. Essa epopeia pode ter durado meses. Pode ter passado pelo Escalvado. Pode ter posto, frente a frente, Bento e minha possível ancestral.
Escalvado era o porto do Itajaí. A cidade havia sido fundada por Antonio Menezes de Vasconcelos Drummond. E ele era maçom – aliás, amigo mui próximo de José Bonifácio. Eis uma informação central: a maçonaria havia planejado e executado a fuga de Bento Gonçalves. A Revolução Farroupilha, assim como a Sabinada na Bahia, foram eventos de inspiração maçônica. É verdade que Drummond, em 1837, já não vivia em Itajaí. Mas é razoável supor que a cidade por ele fundada fosse ainda, poucos anos depois, um reduto da irmandade.
Há mais: os ascendentes de meu avô tinham “Bento Gonçalves” em seus nomes. É possível que isso seja coincidência, claro. Mas é intrigante que todos os descendentes de uma pobre família do Escalvado tivessem esse traço onomástico.
Finalmente, há o testemunho de meu avô. Das várias conversas que tivemos sobre isso, eu me lembro de vários detalhes – e de nenhuma contradição. Meu avô, aliás, sempre encarnou – aos meus olhos, ao menos – o personagem de Bento Gonçalves pintado por José de Alencar. Um e outro, meu avô e o personagem, com a mesma coragem, o mesmo furor, a mesma rigidez. Ambos apaixonados por seus projetos. E ambos, ao realizá-los, implacáveis.
Enfim, eis a hipótese: Bento Gonçalves fugiu de barco da Bahia, atracou no Porto da então jovem cidade de forte inclinação maçônicana e ali conheceu minha ancestral. Eles conceberam um filho jamais reconhecido pelo pai. Mas sua paternidade foi enfaticamente revelada à comunidade, que viu toda a descendência de minha ancestral levar o nome do grande “herói” farroupilha.
A cadeia de registros civis não atesta a hipótese. Não é conhecido o registro do bisavô de meu avô, possível filho de Bento. Essa lacuna não pode ser preenchida. A história, ao ser revelada (ou feita), terá que ser suposta. Talvez uma historiografia mais rigorosa julgue a hipótese de meu avô delirante. Reconheço sinceramente que toda essa história (ou estória) flutua no ar.
Como quem flutua, ontem estive no Escalvado. Pela primeira vez. Dirigi pela estrada à beira da última curva do rio, onde deve ter sido o primeiro porto. Fui até a antiquíssima casa perto da igrejinha. Subi o morro donde se veem as últimas léguas do Itajaí, por onde Bento Gonçalves talvez tenha navegado.
Talvez. Honestamente, esta dúvida não me aflige. Apenas lamento não poder ter feito esse passeio de ontem com meu avô, com quem convivi por tanto tempo. Lamento ter perdido essa magnífica oportunidade. Ele então talvez me desse as pistas que hoje não fui capaz de encontrar. Ou me revelasse, após um sorriso maroto, que tudo isso não passa de mais um de seus deboches. Ou, lembrando de seu avô, Marcelino Bento Gonçalves, apenas chorasse. Teria sido um momento luminoso. E teríamos, em qualquer caso, feito história.
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