Uma hipótese bem aceita sustenta que todos os humanos descendemos dum pequeno e coeso grupo de ancestrais da África. Conquistamos a terra com nosso engenho. Conquistamos o céu com nossas teogonias. Então nos dividimos em nações. E entre elas havia muros tão altos que esquecemos que éramos uma só espécie.
Foram os romanos que ergueram os olhos por sobre os muros. Tinham um tal poder que ousaram sonhar com um império que abrangesse a humanidade. Em Roma, provavelmente, nasceu essa palavra. Cristo a ouviu e a pôs nos lábios de Deus. E Deus disse que nos amava e que nos amássemos uns aos outros.
Dois mil anos depois, nosso amor acabou. A humanidade, esse horizonte comum que une nossos destinos, é agora um cenário incendiado. Dos esgotos surge o discurso inflamável do culto ao ego: “eu, minha raça, minha fé – eis a razão do meu estar-no-mundo”. Esse discurso liberta o ego da preocupação com o destino humano. “Você é imigrante? Foda-se: volte pra sua nação imunda. Você é gay? Foda-se: leve essa vergonha pra longe dos meus filhos. Você é índio? Foda-se: preciso do seu território pra ganhar dinheiro. Você é preta, pobre, favelada? Foda-se, mil vezes foda-se: vou gozar a cada tiro que a polícia der em sua cara.”
O culto ao ego despreza a noção ética de homem, a quem Cristo chamou de irmão. O ego é sectário: tem cor, tradições, religião – tudo isso o define, sem isso ele não existe. Sempre mais, as instâncias de debate sobre o mundo são os templos, as irmandades, os grupos restritos – inclusive de whatsapp. Instâncias onde o ego triunfa juntos aos seus – e onde o outro, o abominável espectro da alteridade, é literalmente demonizado. A democracia padece sob a ação dessas instâncias: sonha em ser o pano de fundo pro debate sobre nossa existência, mas é só o último véu do cenário em chamas.
No limiar da era, o homem caminha ao poente. Vê desaparecer, pouco a pouco, o horizonte azul. Ele compreende: é o fim da humanidade. Na boca da noite surgirá outra palavra a nomear essa espécie. Após a divisão absoluta, devem se abrir entre nós abismos intransponíveis. A palavra ‘homem’ restará a uns como troféu. Ou a outros como cicatriz.
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