Opinião

O Gajo e a Coca

O Gajo e a Coca

Não sou um grande fã de Cristiano Ronaldo. Aliás, prefiro o Messi; ao Messi, prefiro o Zidane; ao Zidane, o outro Ronaldo, o “fenômeno”; ao Ronaldo, o Romário. Mas não estou aqui pra falar de futebol. A Abertura me pediu pra falar das (e para as) empresas. Seu Teco foi franco e direto: “escreva sobre algo útil, não me venha com delírios”. Não que não haja delírios no amplo espaço da Abertura: há. Mas eles são permitidos a quem saiba delirar. “Você escreve sobre direito empresarial”, arrematou Seu Teco. É a parte que me cabe deste latifúndio. Donde se conclui que, se hoje escrevo sobre Cristiano Ronaldo, não é pra falar de futebol: é pra falar de empresas. 

No caso, de uma das maiores do mundo. Dona de uma das maiores marcas do mundo. Uma empresa que redefiniu o conceito básico da economia: “mercado”. Essa empresa deu à palavra um sentido amplo, ilimitado, planetário: a primeira manifestação histórica – concreta e factual – da mais alta abstração de Adam Smith. Pela primeira vez, a divulgação de um produto se dirigia ao destinatário mais vasto: a humanidade. É um feito impressionante. É a marca da Coca-Cola.

Diante dessa marca gigantesca, Cristiano Ronaldo opôs um gesto e umas poucas palavras. Todos vimos a cena: havia garrafinhas de Coca-Cola sobre a bancada; o Gajo as afasta e mostra uma garrafa de água: então aconselha o público a beber o líquido mais saudável. Muitos disseram que a Coca-Cola perdeu milhões em razão disso. Parece que não é bem verdade. A rigor, é impossível saber: nunca se sabe qual a exata razão a influir na variação do valor de uma companhia, especialmente uma assim tão grande. Mas o fato é que a cena causou grande estardalhaço. Tento agora explicar o porquê. Ou melhor: os porquês.

Cristiano é performático. Ele sempre traz consigo todo um mise-en-scène. É como se ele enxergasse na tela, na grande tela do espetáculo que protagoniza, um espelho. Ele tem a noção do alcance midiático de seus movimentos mais sutis. Muitos veem nisso soberba, vaidade, egocentrismo. “É um marrento”, dizem. Pode ser. Mas algo é certo: ele sabe dar ao menor gesto a repercussão mais vasta. 

O gesto do português toca no ponto fraco da marca. Karlan Muniz escreveu esta semana, aqui na Abertura, que “nunca as marcas foram tão percebidas como personas que trafegam no meio de conversas coletivas, e que precisam se posicionar para além do diferencial de mercado concreto”. Se a Coca-Cola fosse uma persona, seria um Aquiles homérico: poderoso, gigantesco, mas com o calcanhar vulnerável. A vulnerabilidade da marca está naquela velha verdade que nossas mães sempre disseram: ela não faz bem à saúde. A garrafinha de água trazida ao centro da tela por um dos grandes atletas de nossa época foi um golpe no calcanhar da Coca-Cola. 

Mais que tudo, o público compreende a cena como um duelo titânico. Um confronto entre o grande jogador e a grande empresa. O Gajo e a Coca. O homem e a instituição. Não é preciso ter lido Hauriou ou Gierke pra compreender o abismo que existe entre essas duas palavras. O homem é o concreto: o corpo, a consciência, a ação. A instituição é o abstrato: algo sem substância, um ente sem vida, um certo arranjo da realidade que só percebemos no plano simbólico, linguístico, jurídico. A Coca-Cola não existe de fato: existe a nossa convenção sobre o que seja a marca, a empresa, a corporação. Mas isso, seja o que for, é gigantesco. É fundamental para milhares, talvez milhões, de pessoas diretamente interessadas em sua existência: trabalhadores, acionistas, credores, etc. E é uma referência concreta para milhões, talvez bilhões, de consumidores do líquido negro e refrescante, que sempre dirão após um gole gelado: “ah!”.

Diante desse duelo todos tomamos partido, ainda que apenas intuitivamente. Todos sempre figuramos o confronto entre o homem e a instituição, a consciência e o sistema, o cavaleiro e os moinhos de vento. Alguns já não acreditam que o homem possa vencer. Alguns, como num conto de fadas, sempre esperam um herói bonzinho que vá destruir o sistema corrupto e imoral. Alguns, os mais sóbrios, compreendem que esse duelo é uma necessidade dialética. 

O gesto do gajo não destruirá a Coca. Talvez nem sequer a tenha abalado. É possível, considerando as mais remotas variáveis, que tenha até fortalecido a marca. Mas a cena teve algo de épico ao performar aquele duelo em um monólogo denso. Mais ou menos como a famosa cena quixotesca.

Sim, eu sei, estou exagerando: no fundo foi só uma ceninha. A Coca segue divulgando sua marca em letras literalmente garrafais. E Cristiano já está em casa após a derrota pra Bélgica. Mas bem disse Seu Teco: “escreva sobre algo útil”. Se decido – sabe-se lá por quê – escrever sobre a ceninha, tenho que lhe extrair a utilidade que possa ter.  

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

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