Opinião

O grande Round 6 do mundo

O grande Round 6 do mundo

Não vi Round 6. Não conheço a trama. Não sei por que a série da Netflix faz tanto sucesso. Sei apenas que fala dum jogo que conduz a um dilema moral: ou os jogadores desistem e suas vidas são poupadas, ou eles seguem até o fim na disputa macabra – que trará a fortuna ao vencedor e a morte aos perdedores.

Soube da existência da produção coreana lendo uma matéria d’O Globo. O texto citava pediatras que desaconselhavam crianças e adolescentes a assistir à série. A matéria me chegou pelo whatsapp, num grande grupo bolsonarista de que participo. Logo notei que outros grupos, também bolsonaristas, a propagavam. De repente, sempre pelo whatsapp, uma tia me escreveu: “Vítor, leia isso: é muito importante”. A matéria em si era de uma pobreza franciscana. Mas o ambiente da rede social lhe agregava horrores barrocos. Tudo confluía para a inescapável conclusão: Round 6 é mais um feitiço do monstro asiático, sub-repticiamente comunista, que quer degenerar nossas crianças e destruir nossas famílias.

Obviamente eu não dou a menor bola a devaneios whatsáppicos. Mas algo me chamou a atenção: o modo como a Globo soube usá-los. Notei claramente que havia uma mecânica adredemente conhecida de difusão dos tais devaneios. Uma fórmula, um método, um sistema circulatório com um intrincado cipoal de veias e artérias – e sobretudo com sua incrível capilaridade. Mais que isso: um sistema semiótico com uma peculiar arquitetura de sentidos, capaz de despertar medos e incitar ódios e exortar reações. No fundo uma arma, uma enorme e difusa e multitudinária arma, sempre pronta a ser engatilhada – e, claro, sempre pronta a disparar.

Bolsonaro é sem dúvida quem mais – e melhor – sabe usar essa arma. No Brasil, ao menos. Essa técnica certamente é gringa. Trump é ainda melhor que seu símile tropical. Banon de certa forma é um dos artífices. No fundo, in the very deep dark core, só pode haver o que – recorrendo a uma metáfora – devemos supor ser a medula do sistema. Algo tão imperscrutável que só nos resta descrevê-lo assim: metaforicamente.

Mas o dado essencial deste episódio é o seguinte: essa arma foi usada pela Globo, um dos alvos prediletos – no Brasil, ao menos – de seus disparos. Sim, a arma está no mercado para quem quiser – ou puder, ou souber – usá-la. Malandros espertos já a usam há tempo; assim atraem a atenção do público e enchem suas plateias, suas lojas, seus templos. A Globo usou agora e atirou no peito da Netflix – que, ao que parece, resistiu ao golpe e até se aproveitou do estardalhaço que gerou.

Mas não se trata apenas de saber usá-la. Há em torno dessa arma uma disputa: ela é o prêmio ao vencedor dum jogo de ódio, em que o adversário se torna um inimigo extremo, irreconciliável, mortal. Um jogo ainda mais macabro que o da série coreana, pois nele nem mesmo é proposto aquele dilema moral: o desejo de matar é aqui uma premissa indiscutível. Vence o jogo quem mais desejá-lo, ou quem melhor persuadir de que esse desejo é bom. A Globo nos convenceu a odiar a Netflix. Trump e Bolsonaro nos convencem a odiar seus adversários. Os senhores dos templos, das lojas e dos espetáculos nos convencem de que, babando de ódio, gozaremos de prazer.

O mundo, enfim, cada vez mais é um grande Round 6. Mas com uma diferença básica. Nós, os homens comuns, sequer somos convidados a jogar: jamais venceremos o prêmio, jamais teremos aquela arma poderosa em nossos mãos. Somos apenas as peças desse jogo. Ou seus espectadores pálidos de pavor.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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