Opinião

O prefeito e o Criolo

O prefeito e o Criolo

Como diria o Benjor, deu no New York Times: o prefeito de Criciúma demitiu um professor da rede municipal porque ele mostrou aos alunos um clipe do Criolo. Alguns esclarecimentos básicos sobre a notícia: os alunos eram do 9º ano do ensino básico, com idade entre 14 e 15 anos; o clipe tem 1,2 milhão de visualizações no YouTube e a canção, Etérea, foi indicada ao Grammy Latino na categoria Melhor Canção em Língua Portuguesa; quanto ao Criolo… bem, você deve conhecer o Criolo. 

No refrão de Etérea ele destaca a palavra “homo”: “Homo, homo, homo/Homo sapiens errou”. Na verdade, destaca a palavra e o étimo: “homo” evoca as tantas palavras que forma. Assim também o étimo “hétero”, que brinca com “etérea” num jogo sonoro bem sugestivo. Está claro que a canção aborda a liberdade sexual. Mais ainda, afirma a necessidade de discuti-la: “É necessário quebrar os padrões/É necessário abrir discussões/Alento pra alma, amar sem portões”.

O prefeito talvez não goste dessa discussão. Como diria a Calcanhoto, vai saber. Em todo caso, ele declarou que não tolerava a exposição do vídeo. Foi exatamente o verbo que ele usou: “[o professor] expôs um vídeo erotizado, de forma inapropriada para os alunos da rede pública municipal. Nós não permitimos, nós não toleramos”. 

É bastante discutível a afirmação de que o clipe seja “erotizado”. A canção certamente não é. O vídeo – na descrição blasé do G1 – mostra “pessoas de diversas orientações sexuais e com diferentes identidades de gênero [que] fazem performances de dança”. Talvez as performances tenham algum erotismo. Talvez os trajes sejam algo picantes. Talvez. Eu não acho. Absolutamente. Você vê coisas bem mais eróticas num passeio de três minutos no tiktok – pra não falar em outras redes sociais. 

Mas não sou o dono da verdade. Eu compreenderia se o prefeito considerasse inadequado o vídeo porque, tendo alguma carga erótica, foi exposto a adolescentes. Discordaria de sua opinião, mas compreenderia. O problema é que não se trata só de uma opinião. 

O prefeito demitiu o professor. O ato viola a liberdade de cátedra e de expressão. Mais ainda: atinge milhares de alunos da rede municipal. O gesto do prefeito definiu que é proibido o clipe do Criolo – e clipes como o do Criolo. Sem lei, sem decreto, sem qualquer tipo de processo legítimo, o prefeito impôs uma regra que restringe as liberdades de milhares pessoas. 

Mas mesmo este ato, se fosse apenas a demissão silenciosa do professor, eu compreenderia. Discordaria desse gesto, mas compreenderia. O prefeito é um gestor. É natural que demita funcionários não estáveis – e suponho que este seja o caso do professor. A falta de adequada motivação poderia ser questionada na justiça. Em todo caso, compreendo que o prefeito demita alguém por razões que, a mim e aos que pensam como eu, pareçam impróprias. Não sou o dono da verdade. 

O que não compreendo é a fala, o discurso, a justificativa expressa que o prefeito deu pro seu ato. Ou melhor: compreendo mas não tolero. Ele disse: “essa viadagem na sala de aula nós não concordamos”. Aí, além de agredir a gramática, ele ultrapassou o limite. Qualquer limite. O mais condescendente limite que se possa imaginar. Ele simplesmente não tem o direito de dizer isso. Ninguém tem.

Mas há muitos que dizem e muitos que querem ouvir. Esse é o detalhe repugnante do episódio: o prefeito usou a fala pra se promover. Ele fez questão de usar a palavra “viadagem”. Fez questão de xingar. Ele julga agradar seu público com isso. Em certa medida, acho que ele tem razão. 

Por trás da adesão desse público a essa fala, acho eu, há um pensamento preconceituoso, ofensivo e enrustido. Não tolerar a homossexualidade é preconceito. Chamá-la de “viadagem” é ofensa. Ver nela uma ameaça é sinal de que a pessoa se sente “ameaçada” por essa “opção”. É como diz o próprio Criolo na mesma música: “Um canalha/Quase hétero/Ignorar amor por complexo/Medo de nele se ver”. Nem eu e nem o Criolo somos donos da verdade; mas, quanto ao ponto, parece que temos idêntica opinião.

Quanto ao prefeito, ele fez seu show. Seu público o cobriu de aplausos. As vestais do moralismo brasileiro suspiraram de prazer. Mas houve a reação. Muitas das pessoas afetadas pelo episódio – e elas são numerosas – não se calaram. Todos assistimos às repercussões. E principalmente: todos paramos pra ouvir a canção do Criolo. O episódio, assim compreendido, é um duelo entre as palavras do prefeito e as do cantor. No placar final, convenhamos, houve uma goleada. 

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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