Opinião

Olavo: astrólogo? 

Olavo: astrólogo? 

Olavo de Carvalho era um homem conhecido por não ser. Sabemos não o que ele era, mas o que não era. Por exemplo: filósofo. Definitivamente ele não era um filósofo – e isso diz muito sobre sua figura. Não era tampouco um pensador. Não era especialista em coisa alguma. Não era político nem militar. Não era empresário nem trabalhador. Não era mestre nem aluno. Nenhum título lhe cabia. Nenhuma arte justifica sua fama. Nenhuma profissão explica seu saldo bancário (que, segundo dizem, é de fato bastante inexplicável). Por que então Olavo se tornou o grande “líder” da chamada “extrema-direita brasileira”? Tenho uma teoria: tudo começou porque ele era – ou dizia-se – um astrólogo: eis o que talvez, de fato, ele fosse. Minha coluna desta semana, como todas as outras, trata de astrologia; mas agora de um jeito novo: ensaia sobre o papel dessa arte – ou dessa crença – nos submundos da política brasileira. 

Olavo não era ninguém até que fundou, em 1979, a Escola Júpiter de Astrologia. No mesmo ano ofereceu um curso de extensão em astrologia na PUC de São Paulo. Estes cursos estão entre os episódios mais relevantes da história do pensamento “exotérico” no Brasil. Havia neles um caráter “iniciático”. E sobretudo: havia nesta iniciação uma porta aberta à elite intelectual e econômica. Sediada nos Jardins, em Sampa, e tendo entre os fundadores Mari Lou Simonsen, a Escola Júpiter semeou “gurus” na high Society brasileira. Entre eles, talvez o mais importante, o próprio Olavo de Carvalho. 

A premissa da astrologia olaviana era tipicamente religiosa: cada um de nós é a expressão limitada de uma “inteligência cósmica”. O conhecimento astrológico relaciona as diversas dimensões e forças do indivíduo, conduzindo-o a “um grau de integração psíquica notavelmente alto”. Este conhecimento dá uma especial “dignidade” à consciência humana: ela alcança a inteligência cósmica de que se origina – e assume assim um caráter divino. Por isso, a astrologia é uma teodiceia: uma “justificação de Deus”. Não há astrologia sem fé. 

Confesso que o discurso de Olavo me soa muito metafísico: creio na dimensão puramente humana da astrologia, na sua potência poética calcada no caráter sagrado (ainda que não necessariamente divino) da linguagem. Mas tenho que admitir que aquele discurso parece bonitinho. Em todo caso, logo me lembro: é só um discurso. Por trás – ou por baixo – daquelas palavras tão pomposas, há um substrato nada nobre. 

A inspiração da “Escola Júpiter” foi sem dúvida Emma de Mascheville, tida por muitos como a maior astróloga do país. Ela foi casada com (e iniciada por) Albert de Mascheville, o “Cedaior”, muito próximo a Ida Hoffmann, tia de Emma. Ida fundou a famosa comunidade do Monte Veritá, nos alpes italianos, por onde passaram figuras famosas e obscuras do início do século XX – entre elas, Aleister Crowley. Albert e Emma de Mascheville chegaram ao Brasil na primeira metade do século passado, estabelecendo-se em Curitiba. Ali se conheceram e se casaram. Eles são o núcleo propagador do pensamento ocultista no país. Cedaior era maçom, praticante da cabala, líder do culto martinista no país. Era também nazista. Quanto mais descemos ao submundo desse pensamento exotérico, feito de ritos iniciáticos e irmandades secretas, melhor compreendemos seus segredos repugnantes.

O ocultismo que Olavo havia herdado de seus precursores tinha uma característica marcante: o conservadorismo. Não se tratava apenas de uma ideologia política, mas de uma concepção moral, social e étnica da história. Mulheres devem se submeter aos homens. Servos, aos senhores. Negros, aos brancos. Conservar essas tradições significava manter uma ordem consagrada numa peculiar crença religiosa. Essa ordem, eles concluíam, tem a chancela divina. 

Esse conservadorismo era música pra alguns ouvidos. Olavo percebeu isso. Em vez de fazer mapas astrais, ele agora fazia discursos. Foi fácil: bastava copiá-los daqueles feitos pelas seitas extremistas americanas, com longa tradição em forjar um conservadorismo religioso e racial. Desde a guerra da Secessão, quando os confederados pretenderam justificar a escravidão com slogans de guerra, essa tradição se alastrou pelos esgotos da cultura ocidental. Na segunda guerra, a propaganda nazifascista retoma esses elementos. O ideário supremacista, que ainda hoje alimenta essas hostes, da KKK à Alt-Right, é essa mesma propaganda requentada num caldeirão sempre cheio de ingredientes místicos. As fontes dessa tradição têm nítido acento ocultista. Olavo, o astrólogo, adaptou-se muito bem a esse ambiente. 

Considerando as peculiaridades brasileiras, essa adaptação foi particularmente fácil. Aqui seu ocultismo conservador encontrou expressão num discurso de ódio. Repaginando as teorias conspiratórias dos apoiadores da ditadura brasileira, que por sua vez tinham repaginado teorias macartistas, Olavo elege um inimigo que desempenha uma função retórica altamente performática: o “marxismo cultural”. É uma velha fórmula essa de eleger inimigos monstruosos e atribuir a eles todo o mal: os confederados fizeram o mesmo com os abolicionistas; os nazistas, com os judeus; a ditadura brasileira, com os comunistas. Olavo, retomando as premissas do Orvil e acrescentando atualizações delirantes sobre o “Foro de São Paulo” ou sobre “as estratégias gramscianas da esquerda”, joga sobre os ombros desse inimigo todo o peso de seu discurso sombrio. Tudo o que é ruim, da pandemia de covid à obscenidade dos programas de tv, foi atribuído aos marxistas. 

Então Olavo virou uma estrela. O antigo astrólogo era agora um pensador político – e ainda e sempre um guru. Seu discurso era exatamente o que esses setores da extrema direita brasileira queriam ouvir: tinha o maniqueísmo tolo da retórica do ódio e a fundamentação mística das doutrinas religiosas. Ocultismo aplicado à política. Supremacismo exotérico. Se esses setores da direita e da elite haviam sido idiotas o bastante para crer na astrologia de Olavo, por que não creriam em sua ideologia? Como resistiriam a um discurso que os transformava em herdeiros da longa e sagrada e secreta “tradição”, que por sua vez os consagrava como “eleitos”? 

Concluo. 

Ao escrever sobre a fundação da Escola Júpiter de Astrologia, às 5 horas de 05/05/1979, Olavo desenhou o mapa astral dessa ocasião. Apontou Júpiter na quarta casa, em trígono com o ascendente, no signo de Leão. Segundo ele, a “astrologia” (sim, ele então falava em nome da “ciência”) via como uma das “atribuições” de Júpiter “emergir de um estado de fragmentação e reencontrar uma visão totalizante e harmônica”. Disse também que “a quarta é a casa dos pais e do passado, todos os que antes de nós trilharam esse caminho, utilizando a ciência, a arte e a fé como instrumentos da preparação da consciência humana”. Babando de soberba, o astrólogo apontava ao passado e ao futuro: falava da herança que recebia e da missão – nada humilde – de superar a modernidade. Não fez mais que astrologia encomendada. Linguagem codificada pra falsos iniciados. Clichê barato. 

Não, Olavo não foi nem mesmo um astrólogo. Sua herança vinha do mais duvidoso ocultismo brasileiro. Sua missão logo dispensaria seu disfarce. O guru de certa elite econômica paulistana se tornou o ideólogo de um movimento vasto que consagrou os valores mais inconfessáveis dessa elite; e, ao realizá-los, atirou o país na pior crise de sua história – uma crise econômica, social e sobretudo moral. Vindo dos esgotos mais obscuros da humanidade, Olavo trouxe de lá um discurso podre – e nos condenou a todos, talvez por muitos anos, a sentir o odor de seu mau hálito. 

Cármen Calon

Cármen Calon é astróloga com amor pela, e às vezes pânico diante da, astronomia.

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