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Os dias e os filhos de Escorpião

Os dias e os filhos de Escorpião

Maytreia perguntou a Parashara: “qual a relação dos homens com os astros?” A resposta do sábio é um vasto tratado, um dos mais interessantes da astrologia. Mas há quem, diante dessa pergunta, não saiba dizer uma única palavra. Tenho amigos que falam simplesmente: “não há sentido em supor que pessoas dum dado signo sejam assim ou assado. Não há sentido em supor que determinados dias nos trarão isso ou aquilo. Não há sentido em dizer que um planeta, numa dada posição, surtirá tal ou qual efeito. Cada estereótipo, cada previsão, cada influência depreendida dos astros sempre atingiria centenas de milhões – talvez bilhões – de pessoas, unindo-as em destinos total ou parcialmente comuns: isso não passa de uma tentativa grosseira de simplificar a infinita complexidade da existência”. Então esses meus amigos concluem: “não pode haver relação alguma”. 

Como o badalo dum sino, eu vacilo entre a resposta dos meus amigos e a do sábio Parashara. Às vezes a astrologia se ergue diante de mim com uma colossal arquitetura. Às vezes desaba como um castelo de cartas. Entre esses extremos, vou recolhendo visões e descobertas. Sobre estas me deito pra contemplar o céu da noite. 

Sob o céu eu reflito: é tempo de Escorpião. Duas perguntas me assaltam: o que significa ser escorpiano? O que esperamos nós, escorpianos ou não, desses dias em que o Sol e Antares andam de mãos dadas? Meus céticos amigos diriam: “nada”. Mas essa resposta não me soa bem. Certo, certo: talvez seja arbitrário dizer que escorpianos sejam assim ou assado, ou prever que esses dias trarão isso ou aquilo. Mas me parece tão nítida a influência do signo que concluo: há algo que distingue os dias e os filhos de Escorpião. 

Existe, se me permitem o neologismo, uma evidente escorpianidade em cada pessoa desse signo. Todas elas me parecem escorpianos típicos. Têm todas uma verve afiada. Um veneno inteligente e desconcertante. Um dom de reagir ao perigo. Podem ser calmas ou tensas, expansivas ou ensimesmadas, cheias de sorrisos ou de angústias. Mas nunca são fracas, nunca se entregam, nunca podem ser subestimadas: são sempre capazes dum golpe agudo e sutil.

De todos os signos, Escorpião é o mais instigante. Seu regente é Plutão, o deus das profundezas. Contam as lendas gregas que ele raptou Perséfone, filha de Deméter, ambas personificações da fecundidade feminina. A palavra ‘rapto’ é um eufemismo: a lenda deixa implícita a violência sexual. Nas profundezas do Hades, nas mais remotas camadas da existência, ecoa o horror do estupro. Escorpião simboliza a reação a esse horror: seu veneno matou Órion, que tentou violentar Artemísia. O animal age num contexto subterrâneo, onde não há juízos morais e as potências humanas atuam em estado bruto. Também ali ele é capaz dum golpe agudo e sutil. 

Lendas, símbolos, arquétipos: meus amigos céticos torcerão o nariz pra tudo isso. Dirão que não há nada, nem o mais tênue traço, a unir todos os escorpianos – e muito menos a ligar nossos destinos na vala comum do tempo de Escorpião. Certo, certo: talvez isso seja só literatura. Aliás, como diz a famosa hipótese de Derrida, tudo talvez seja “apenas” um grande texto. Mas pergunto: justamente aí, na existência completamente constituída pela linguagem, não será a astrologia – e suas lendas e símbolos e arquétipos – uma tentativa válida de compreender o tempo, o mundo, a vida? A resposta de Parashara, que tem o olhar fixo no céu, não tem mais poesia que a dos meus amigos (que olham, afinal, pra onde?)?

Cármen Calon

Cármen Calon é astróloga com amor pela, e às vezes pânico diante da, astronomia.

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