Opinião

Pássaros não são reais

Pássaros não são reais
Reprodução Birds Aren't Real

Definição atualizada de otário: pessoa que acredita em alguma teoria da conspiração. Os anti-vacinas, os anti-máscaras, os negacionistas? Otários. Membros da seita unida contra o complô comunista pra dominar o mundo? Otários. QAnons, supremacistas, neonazis? Otários, muito otários. 

Otários não são loucos. Há alguma razão naquilo em que creem. Uma razão limitada, uma hipótese cambaleante, uma trama de fios amarrados em lugar nenhum. Mas de fato alguma razão: eles expõem suas premissas, eles deduzem suas conclusões, eles vomitam um raciocínio lógico. Sim, é a razão doentia de um vômito. Uma razão pustulenta que nasce de uma ferida – real ou metafórica. Uma razão fedorenta como uma flor do pântano. Mas insisto: há uma razão. Otários não são loucos. Loucos agem irracionalmente. Otários são piores, bem piores. E mais perigosos. 

Mas otários são sobretudo otários. Quando desmascarados, quando vistos sob a lupa, quando analisados em si mesmos sem que se considere o mal que causam – eles são ridículos. É o que prova Peter Mclndoe, um jovem americano criador de um delicioso experimento. Ele conta que em 2017 presenciou um protesto pró-Trump e então, juntando-se à turba, escreveu num cartaz: “Birds aren’t real”. Eureka: Mclndoe teve a ideia de criar uma “teoria da conspiração” sustentando que os pássaros são drones a serviço da espionagem do governo americano. 

Uma sátira, quando é boa, ilude quem é satirizado. Ao que parece, foi o que ocorreu: segundo o NYT, centenas de milhares de pessoas seguem o perfil “Birds aren’t real” no Instagram e no Youtube. Há vídeos – com atores fingindo ser membros da CIA que revelam segredos do governo – com milhões de visualizações. Muitos dos que seguem o perfil e participam dos eventos dessa “organização” – ela promove manifestações e outros atos públicos – são também sátiros ou apenas pessoas em busca de boas gargalhadas. Mas muitos, segundo sugere o NYT, aderiram verdadeiramente à “causa”. 

Agora McIndoe vem a público revelar a sua grande peça. “Sim, nós espalhamos desinformação intencionalmente nos últimos quatro anos”, ele declarou, “mas com um propósito: fazer a América da ‘era da internet’ se olhar no espelho”.  E resumiu seu método: “é um modo de rir da loucura (madness) ao invés de ser tomado por ela”.

O jovem autor desse fabuloso experimento revela-se um artista brilhante – afinal, concebeu uma obra-prima da sátira. Mas erra ao usar a palavra “loucura”. Não são loucos quem ele satiriza. São otários. O grande mérito da obra de McIndoe é demonstrar que eles são ridículos. O conspiracionismo, no fundo, é risível. 

Mas esse mérito é ambíguo. Não sei se deveríamos rir dos otários. Se eles não nos fizessem mal, seriam só palhaços. Mas eles fazem mal. Muito mal. E rir do que eles fazem talvez não deva ser uma opção. O mal que eles fazem deve que ser criminalizado. Devem ser apreendidas as ferramentas que eles usam. Deve ser cortado o fluxo de grana imunda que os alimenta e os manipula. Porque o mal que causam é diretamente proporcional ao grau de manipulação a que se submetem. O perigo dos otários é que eles não passam de um gado. 

O exército de otários – criado, alimentado, manipulado por instâncias obscuras – é talvez a grande ameaça de nosso tempo. Uma ameaça que costuma se ocultar nos subterrâneos do mundo, mas que emerge de tempos em tempos. Agora ela está aí: visível, petulante, indiferente à vergonha de ser ridícula. Agora os otários vêm à tona munidos de conspiracionismos e dispostos às mais pavorosas ações. Agora, portanto, é um daqueles momentos em que história mergulha numa profunda crise moral. Os otários, e em última análise as obscuras instâncias que os manipulam, são os grandes responsáveis por esse quadro. E não há graça nisso.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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