Dois eventos chocaram o Brasil nos últimos dias. Um deles é algo bem intestino – literalmente. O outro, um evento rigorosamente mundial. Entre ambos, um traço em comum: o choque. Eu disse que ambos chocaram o Brasil, mas corrijo: eles chocaram o mundo. Especialmente quem ouse pensar – sim, isto é uma ousadia – sobre o Brasil.
A aprovação da PEC na Câmara, confirmada ontem à noite, não poderia ter sido mais repugnante. Um rio subterrâneo de verbas desceu diretamente do Planalto para os bolsos de parlamentares que votaram a proposta numa sessão mafiosamente convocada e presidida por Arthur Lira. A PEC permite ao governo Bolsonaro estourar o teto de gastos e dar o calote nos seus credores. Com isso, dá ao Presidente quase cem bilhões pra investir em sua reeleição. A política brasileira costuma ser imunda, mas a aprovação da PEC foi capaz de chocar o mais escroto dos ratos que povoam os subterrâneos de Brasília.
A COP nos chocou de outra forma. Aliás, de muitas. O evento, como talvez nenhum outro, mostra ao mundo os efeitos catastróficos do aquecimento global. O choque deve-se não só à iminência da catástrofe, mas também à magnitude dos esforços que devemos fazer pra evitá-la. Esses esforços exigem que nos recriemos: o sonho de ficar sempre mais rico, mais poderoso, mais conquistador – esse sonho acabou. Nossa ambição ilimitada é irrazoável. O planeta exige que nos tornemos um outro animal. Aquele miserável gafanhoto que éramos já não pode mais existir.
Mas a COP foi chocante também por uma outra razão. Nós, brasileiros, pudemos nos ver no espelho. Descobrimos – com uma clareza nunca vista – o que somos aos olhos do mundo. Não é só o nosso Presidente que nos envergonha. Somos nós. Os que o elegemos. Os que suportamos seus chiliques e clichês patéticos. Os que conduzimos ao poder – ao poder sobre a nação ambientalmente mais importante do mundo – um… Jair Bolsonaro.
Eis o detalhe: o Brasil é a nação mais importante do mundo quando se discute a crise climática. Os países ricos têm, de longe, mais “culpa” pelos problemas que nos assolam. Mas o Brasil é a chave da solução. Deveríamos ser os protagonistas da COP. Mas nosso presidente nem compareceu: sua participação no evento se resumiu a ser (o maior) motivo de piada. E de repúdio.
Enquanto acontece a COP, Bolsonaro trabalha pela aprovação da PEC e sela sua candidatura pelo PL. Transita pelos esgotos da política brasileira – bem diante de nossas caras de babacas. Nunca foi tão fácil entender o Brasil. Nunca foi tão difícil esperar algo de nós.
A COP e a PEC nos chocaram da forma mais dolorosa: elas nos confrontaram com a nossa vergonha. Em todos os espelhos, em todos os olhos, em toda parte só vemos isto: nossa imagem vergonhosa. O brasileiro sempre teve um valor ambíguo diante do mundo e de si: nossa miséria, nossa imundície, nossos abismos sociais – tudo isso sempre foi compensado por nossa malandragem inteligente, por nossa força plástica, por nossa leveza musical. Agora não: somos a escória absoluta, os imbecis perigosos, o ralo por onde vaza o futuro da humanidade. Somos isto aos olhos do mundo – e aos nossos próprios.
A esperança talvez esteja aí: na compreensão honesta, profunda, dolorosa de nossa vergonha. Se isto acontecer, terá sido um marco histórico. Mas talvez eu esteja sendo otimista: nossa vergonha se deve também à nossa incapacidade de compreendê-la tão profundamente. Ou, o que é pior, às nossas caras de babacas diante dela.
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