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Pílula literália: Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Pílula literália: Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Tudo começa com a faca decepando a língua de Belonísia. Bibiana, a narradora da cena, aprende a primeira grande lição: emprestar sua voz à irmã mutilada. “Agora uma teria que falar pela outra”. Ambas se tornam “quase siamesas ao dividir o mesmo órgão”.

Torto arado, desde o começo, é a saga do falar. Três falas se sucedem contando a história dos negros da fazenda que é o solo e o cenário e o horizonte da trama. Três vozes negras criando o fluxo narrativo: um rio de sangue que escorre da faca, da língua, dos corpos em luta.

É a história da luta. Ou antes da sobrevivência dos negros sem direitos sobre a terra em que estão fadados a viver e a morrer. A história de seu trabalho e seus sonhos. De seus iguais e seus senhores. De seus encantados e seu Deus. Os negros trabalham e lutam e assumem a narrativa. “De seu movimento”, disse uma voz encantada, “virá sua força e sua derrota”. Inclusive “a derrota dos sonhos”. Mas há aí o sinal da luta. E a luta é o que move o homem.

O movimento é sobretudo o resgate da história. A ousadia de se reconhecerem quilombolas. A busca do direito à narrativa. O senhor branco da terra percebe a resistência que daí surge. Corpos negros tombam sobre a parte que lhes resta dessa terra: a cova.

A luta se acirra e se alastra. Penetra nas consciências. Trepida nas vozes que se erguem diante do senhor: “Belonísia encarou o fazendeiro”, disse aquela voz encantada, “contornou a sombra de Salomão projetada no chão e escarrou sobre ela o veneno que guardava na boca”.

Torto arado é a voz mutilada de Belonísia. A voz amarga de Bibiana, tremendo de raiva. A voz encantada que afinal conclui: “sobre a terra há de viver sempre o mais forte”. São os negros da Fazenda Água Negra lutando pra ter voz.

A saga do falar resolve-se em luta. A história é contada por quem resiste.

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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