E se, entre Robinson Crusoé e seu companheiro silencioso, Sexta-feira, de repente se inserisse uma mulher? E se ela ousasse reescrever a saga desses personagens, dos mais famosos da literatura mundial, tomando o lugar de seu criador, Daniel Defoe? E se esta mulher então estivesse nos dois pólos dessa história, protagonista e narradora, personagem e criadora?
Foe é um ensaio metalinguístico. O próprio texto, o famosíssimo texto de Defoe, o é protagonista do livro de Coetzee, ganhador do Nobel. Susan Barton, a mulher que vive e narra a história, ousou vivê-la e narrá-la de um outro modo, sempre perplexa entre os três homens com quem contracena: Foe, o escritor; Cruso, o marinheiro inglês que ela encontra na ilha deserta; e Sexta-feira, o homem sem língua.
A mutilação de Sexta-feira é talvez o grande mistério do enredo. Sua língua foi cortada e sua voz se calou pra sempre. Susan se questiona obsessivamente sobre esse crime: quem o cometeu? Os traficantes de escravos? Os canibais? O próprio Cruso? Ela cogita inclusive uma hipótese: Sexta-feira nasceu numa tribo em que as mulheres cortam a língua dos homens para perpetuar seu matriarcado. Trata-se disso também a história: a mulher num mundo de homens.
Sexta-feira e Susan, juntos ao longo de toda a narrativa, são seus pólos: ela, a voz que se ouve o tempo todo; ele, o silêncio jamais quebrado. “É preciso apenas estabelecer os pólos”, diz Susan, “o aqui e o ali, o agora e o então – depois disso as palavras deles mesmos fazem a aventura. Eu não imaginava que fosse tão fácil ser uma autora”.
Foi um arroubo retórico. Susan não acha jamais as respostas que procura. O texto, que ela tenta arrancar de Foe, jamais se produz. Por trás deles, personagens criados e personagens criadores, Coetzee procura a terra firme da narrativa. Não surpreende que a ilha deserta, perdida no oceano mudo, seja a premissa metafórica de sua busca.
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