Digamos que você queira vender um imóvel a alguém que queira comprá-lo. O valor que você receberá na venda é muito maior do que o valor pago na compra do bem. Você terá que pagar imposto de renda. Não será pouco. Então você tem uma ideia: abre uma empresa e transfere o imóvel a ela; essa empresa faz a venda do imóvel àquele que quer comprá-lo; e o dinheiro recebido pela empresa chega a você por distribuição de lucros. Suponha que você pague muito menos tributos ao fazer o negócio através da empresa que você abriu. Pergunta: isso é sonegação de imposto?
A hipótese foi simplificada ao extremo. Há inúmeros detalhes não mencionados a considerar. Portanto, não tente fazer isso em casa. Mas a essência da hipótese você conseguiu reter: havia duas formas de fazer o negócio e você escolheu a aquela em que recolhe menos tributos. Você tem o direito de fazer essa escolha?
Essa é uma questão interessante por duas razões. Pra quem se interessa por Direito Tributário, ela é fundamental. Pra quem se interessa pelo Direito, com D maiúsculo, ela é muito ilustrativa. Talvez você não tenha o menor interesse em Direito Tributário. Mas acredite: o Direito – com D maiúsculo – deve atrair seu interesse, até porque ele vai influir na sua vida.
A resposta àquela pergunta pode ser, em princípio, puramente abstrata. O Direito gosta – ou finge gostar – de respostas assim ideais, teóricas, puras. A resposta abstrata diria: não há sonegação. Você tem o direito de abrir uma empresa e de lhe transferir o imóvel. A empresa tem o direito de vendê-lo e de distribuir os lucros decorrentes da venda. Todos os atos realizados são permitidos pela lei. Tudo é lícito. Você atuou no espaço de sua liberdade.
Acredite: essa resposta é hipócrita. Não porque ela se baseie em premissas falsas. Mas porque a verdadeira resposta nunca leva em conta apenas essas razões abstratas. O Direito não é só a lei e a interpretação da lei. É também o monstro titânico que nos atinge o patrimônio, a liberdade, a vida. Em tese, esse monstro age segundo a lei; mas, na verdade, há sempre outras variáveis a determinar sua ação. Entre a lei e ação estatal, entre o aspecto mais abstrato e mais concreto do Direito, há um abismo insondável. Em suma: você pode enunciar aquela resposta ideal, teórica e pura; mas isso não evitará que um fiscal de tributos federais considere que você sonegou o imposto.
E talvez ele considere, de fato. E então diga que houve simulação: a criação da empresa, a venda por ela realizada, a distribuição de lucros – ele dirá que tudo isso é fraude. Com o dedo em riste, concluirá que você não queria abrir uma empresa e muito menos lhe vender o imóvel; você só queria pagar menos tributo. Como diriam Lennon e MacCartney, citando Maiakovski: “taxman, oh, taxman!”
Haverá então um processo. Você submeterá a questão a juízes. Eles ouvirão seu argumento: você dirá que quis de fato criar a empresa e transferir a ela o imóvel; e que a razão do seu “querer” pode ser inclusive esta: recolher menos tributos. Você perguntará: não é permitido esse “querer”? Estará em questão a licitude desse desejo. O Direito então, ao discutir essa questão, trará à cena seus dois impulsos básicos.
De um lado, um impulso repressor que não admite “desejos” que se dirijam ao próprio Direito: como o impulso de um pai que governa as ações do filho, sem permitir que este interfira nesse governo. O pai detém uma soberania absoluta. Não é possível que, em relação ao filho, ele tenha duas vontades: uma mais rigorosa, outra menos. Não é possível que o filho possa escolher, mediante artifícios, esta última. Um tal artifício seria algo como um golpe parricida. Ou um aceno a uma Jocasta rebelde e tentadora. Enfim, tudo muito edipiano.
De outro, um impulso autorregulador. O Direito, exatamente em razão de sua soberania absoluta, deve garantir ao súdito a liberdade: só assim aquela soberania é contida e equilibrada. Essa liberdade é a força que impede o Direito de exercer seu poder inconfrontável de modo devastador. Diante dessa força, pode-se apontar os limites do direito, revelar suas falhas, torná-lo mais eficiente e racional. É precisamente assim, ao se relacionar com a contingência e complexidade do ambiente em que atua, que o Direito se aperfeiçoa. Não é aconselhável que ele proíba todos os comportamentos que não conseguir prever; é melhor que ele os assimile e, assim, aprimore-se.
Esses dois impulsos são metonimizados nos argumentos que, de um lado e de outro, discutem a questão. Os juízes a decidirão em cada caso. Mas ela, a questão, jamais será definitivamente respondida. O processo definirá se você sonegou ou não os tributos. Mas essa definição valerá somente para o seu processo. A questão, retomada de novo em outros contextos, sempre se renovará.
“E então”, você perguntará, “posso abrir a empresa pra vender o imóvel?” Lamento dizer que somente seu advogado poderá dar a resposta, diante dos detalhes do caso. Este artigo apenas tenta extrair da questão uma visão dos impulsos sob os quais “age” o Direito – até porque ele, como eu já disse, vai influir na sua vida. Lennon e MacCartney (e Maiakovski) que o digam.
Comentários: