Nosso presidente é acusado de falar coisas sórdidas. Não raro, cínicas. No melhor dos casos, estapafúrdias. Não discuto. Nem com seus acusadores, nem com quem vê justamente nesse discurso estapafúrdio (no melhor dos casos) um sinal de autenticidade mítica. Meu tema não é o discurso de Jair, mas apenas um dos seus recentes discursos. Ou melhor, uma declaração dele. Melhor ainda, uma confissão:
“Quantas vezes choro sozinho no banheiro? Nem a Michelle sabia”.
Achei fofo. Sério, sem ironia: fofo. Chorar no banheiro? Sozinho? Escondido da Michelle? Definitivamente fofo. Bolsonaro literalmente se despiu. A confissão induz uma imagem. A imagem retrata a cena. A cena é dramática: Jair chorando no chuveiro, no bacio, no piso frio em frente à pia (com a torneira aberta pra abafar o som dos soluços). O personagem desta cena é um Jair jamais visto. Um Jair reflexivo, triste, frágil. Um Jair fofo.
A cena estalou a lembrança daquela música do Raul. Ela fala de (e para) um velho amigo do poeta, Pedro. Logo no início destila esses versos: “Vai pro seu trabalho todo dia/Sem saber se é bom ou se é ruim/Quando quer chorar vai ao banheiro/Pedro, as coisas não são bem assim”. O Raul é fogo: numa minúscula estrofe ele encena um personagem cheio de traços: homem comum, frustrado, perdido – e eventualmente desesperado. Chorar no banheiro diz muito sobre um homem.
Volto a Jair. Imagino o presidente no banheiro. Ele faz coisas que todos fazemos. Urina. Defeca. Masturba-se. Talvez pense na Carlinha com aquela pintinha sobre os lábios. Talvez na Joyce fazendo a pose mais submissa e implorando: “me desculpa, Capitão”. Acho improvável que ele pense na Damares. Em todo caso, imagino ele nu. Pálido. Flácido. Enrugado. Então focalizo seus olhos: estão ensopados de lágrimas.
Há quem diga que a confissão é falsa. Que a encenação é cínica. Que Jair na verdade gargalha de nós, especialmente quando no banheiro. Não concordo. Acho que ele chora, de fato. Acho que há momentos em que ele se despe do personagem encenado diante do público. E acho que nesses momentos ele se descobre vazio. Kierkegaard sugere que esses momentos são abismais. Acho sinceramente que Jair se desespera ao ver que despenca pelo ralo da pia. E então chora de verdade.
Jair é o Pedro do Raul. Ambos nos dizem que a vida é séria e a guerra é dura. Ambos nos chamam de vagabundos. Ambos usam sempre o mesmo terno. Mais que tudo, na solidão do banheiro, ambos choram.
O Raul escreve a música pra se afastar do Pedro. Pra selar esse afastamento. Pra ressaltar o fato de que os antigos amigos tomaram rumos opostos. O Raul não gosta do Pedro. Não tolera o cara: “cale essa boca, Pedro, e deixa eu viver minha loucura”. O maluco celebra porque está, afinal, livre do careta.
Mas o Raul não é um poeta que se satisfaça com caricaturas. E vem então o paradoxo final: “Pedro, onde cê vai eu também vou”. Paradoxo lívido, diria Rimbaud. Aquela libertação é relativa. Os rumos opostos afinal se encontram. Malucos ou caretas, nossos destinos estão ligados. Raul e Pedro, nós e Jair, todos seguimos juntos. Ainda que distantes, e distintos, todos os Pedros do mundo nos afetam. Especialmente Jair.
Se Jair vivesse o tempo todo no banheiro, talvez não nos afetasse. Mas ele vive também na grande sala do Planalto. E de lá nos afeta, a todos, profundamente. Jair influi em nosso destino. Se ele chora sozinho, nós choramos juntos diante do país que ele governa. Ou pelo menos deveríamos. E não apenas chorar, mas também fazer algo pra superar essa tristeza. Lutar, resistir, sonhar, sei lá. Algo que definitivamente não se faz no banheiro.
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