Parte 1: a verdade sobre a guerra
Não, você não sabe. Sim, eu sei: você acha que sabe, ou acha que sabe quem sabe. Mas insisto: não sabe. A guerra começou: isso todos sabemos. Mas nenhum de nós sabe a verdade sobre ela.
Você sabe da guerra o que viu em seu whatsapp (ou em seu telegram)? Você leu os mais confiáveis analistas nas línguas dos dois (ou mais) lados do conflito? Você é um agente secreto de alguma potência oriental ou ocidental (ou acidental)? Você é o próprio Putin, ou o próprio Zelensky (ou próprio Biden)? Não importa, você não sabe a verdade sobre a guerra. Pois a guerra é, sobretudo, a disputa pela verdade.
A verdade sobre a guerra se esboça em rabiscos. Esses rabiscos são informações. Essas informações são sempre insuficientes: não se pode ter todas. E sempre parciais: todo informante tem um lado na guerra. Eis o detalhe: ele não pode ser neutro. O mais cândido registro, diante da violenta dicotomia que a guerra instaura, pode ser sempre apropriado por um dos lados. Se a guerra é a disputa pela verdade, dizer “verdades” sobre a guerra é também fazê-la.
Desses rabiscos se compõe nossa representação da verdade. Eles vêm em fluxos que entram por nossos olhos e ouvidos e riscam nossa tela mental. São parte da guerra. Nossa época revolucionou a geometria desses fluxos. Há cinquenta anos recebíamos todas as informações pela TV, pelo rádio, pelos jornais. Hoje, grande parte delas vem dos seus grupos do zap (que você considera, confesse, altamente informativos). As redes sociais trazem todas as versões possíveis sobre a guerra. Se apoiamos Zelensky, vemos russos explodindo orfanatos. Se apoiamos Putin, vemos ucranianos louvando a suástica. Se duvidamos, as questões se multiplicam. Se buscamos respostas, encontramos encruzilhadas. Lemos sobre o Euromaidan, o Batalhão de Azov, Yatsenyuk, Dugin, Surkov, as igrejas ortodoxas, o passado bufão de Zelensky, o futuro autocrata de Putin, o “deep state” americano, o “soft power” chinês, a guerra híbrida dos matemáticos de San Peter. Nossas pesquisas criam sempre mais hipóteses. A grande mídia nos induz a selecioná-las e os algoritmos, com sugestões irresistíveis, a escolhê-las. Canhões distópicos nos bombardeiam conclusões. Sempre há alguma que nos sirva. Sempre temos arrogância suficiente pra acreditar que encontramos a verdade.
Então entramos na guerra. Propagamos nossa verdade, ou melhor, a verdade que nos atingiu. Somos soldados desferindo tiros de propaganda. Somos títeres nas mãos dos poderes em confronto. Pois sem dúvida há tais “mãos”. Há quem “maneje” esses canhões distópicos. Há quem dispute o controle desses fluxos de informações. Já vimos: a guerra é sobretudo essa disputa. As armas mais letais são as que desferem “verdades”.
E entretanto temos que dizê-las. Ouvi-las. Buscá-las. Eis o paradoxo: a verdade sobre a guerra não pode ser conhecida; mas o dever de buscá-la jamais pode ser ignorado. A guerra na Ucrânia envolve o mundo. Todos temos que esboçar uma verdade sobre ela. Ninguém pode fechar os olhos diante dos rabiscos. Ninguém pode deixar de assumir uma posição.
A busca pela verdade supõe a razão. Não basta estarmos atentos às informações ou sabermos selecioná-las e mesmo garimpá-las em camadas ocultas. Precisamos encontrar pontos de consenso, respeitar instâncias de debate, construir processos em que as visões contrárias sejam sujeitas a julgamentos legítimos. Precisamos confiar em verdades construídas por discursos racionais. Portanto, precisamos dialogar desarmados: a verdade não pode ser disputada; ela deve ser construída. Se a verdade supõe a razão, a razão supõe a paz.
Trata-se, enfim, de estabelecer um método: é sempre a premissa inicial de qualquer análise. Se queremos compreender a guerra, temos que buscar verdades além do espaço discursivo – e propagandístico – da própria guerra. Isso não é fácil: é vasto esse espaço, são nebulosos seus limites. Mas é preciso tentar. Filtrar informações. Contextualizá-las. Compreender os fatores desse contexto. Submeter tal compreensão a um teste epistêmico. Então, humildemente, estabelecer as premissas de uma análise racional da guerra. Assim talvez construamos verdades. Na pior das hipóteses, estaremos bem preparados pra resistir às mentiras.
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