Lima Barreto, um dos grandes escritores de nossa história, completou sete anos no dia da promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Muito tempo depois ele escreveria suas reminiscências dessa ocasião:
“Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.
Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.
Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.
Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas…”
A memória afetiva, baseada nas impressões de criança, resgata protagonistas do evento histórico: o grande Patrocínio, a Princesa. É um impulso tipicamente infantil assimilar grandes eventos a grandes pessoas: em cada história buscam-se heróis. Sem dúvida as crianças veem a história sob o efeito desse impulso. Os adultos, em alguma medida, também.
Isso explica que o 13 de maio, nos últimos anos, tenha suscitado menos entusiasmo. O Dia da Consciência Negra, que celebra em 20 de novembro Zumbi dos Palmares, tem sido bem mais prestigiado. Nesta data evoca-se um herói negro. Naquela, uma princesa branca. No contexto da luta histórica – ainda em curso, ainda longe do fim – por liberdade e igualdade, é natural que as façanhas de Zumbi nos entusiasmem mais.
“Quando tratamos dessa questão de datas, o 13 de maio em contraponto ao 20 de novembro, estamos tratando intrinsecamente da questão do protagonismo”, afirmou à BBC o historiador Philippe Arthur dos Reis, da Unicamp. “E do entendimento do protagonismo de determinados agentes no processo de luta e de conquista da liberdade frente à escravidão, no caso do povo negro.”
Mas a importância do 13 de maio não se mensura a partir da “questão do protagonismo”. Não se trata de avaliar apenas o papel histórico da Princesa. A Lei Áurea supõe um processo político, cultural e social. Nele litigaram forças de diversas origens, defendendo interesses valiosos ou escusos, com argumentos célebres ou intoleráveis. Como todo processo histórico, ele é insuscetível a esquematizações maniqueístas e a reduções românticas. A sociedade brasileira, com toda a sua complexidade, é a protagonista desse processo.
A criança de sete anos via a Princesa na janela do Paço. Não lhe escapou, porém, a figura altiva de José do Patrocínio. Há outros negros que protagonizaram o movimento: o engenheiro André Rebouças, o escritor e jornalista (e também advogado, como reconheceria a OAB postumamente) Luiz Gama. Com sete anos, Lima Barreto talvez intuísse a extensão da luta que determinou a “data áurea”. Afinal, era isso o que ocorria em 13 de maio de 1888: a luta, ainda hoje em curso; e a conquista, insuficiente mas importante.
A Lei Áurea não determinou a libertação – verdadeira, efetiva, necessária – dos negros brasileiros. Tampouco foi uma resposta altruísta às suas demandas: ao lado de toda a luta, houve interesses escusos em sua origem. Não houve heróis, não há por que procurá-los. Mas houve uma conquista, um passo adiante, a conclusão de um processo que nos deixou um legado. Isso não é pouco. Há que celebrar.
“Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país”, questionava-se Lima Barreto no mesmo texto em que registrou as reminiscências antes citadas. Ele próprio, então, respondeu: “Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão.”
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